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O auto de Inês - do estupro à anistia

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Desde a Grécia Antiga, a História é prodiga em produzir figuras femininas trágicas vivendo papéis marcantes. A mineira Inês Etienne Romeu, militante de uma organização revolucionária nos anos 1960/70, pode ser considerada uma delas. Participou de ações armadas e sequestros, foi presa e torturada como tantos outros jovens de sua geração. Mas seu destino tomou um rumo inesperado ao ser levada para um porão especial, uma espécie de laboratório nazista, onde se aplicava a tortura com método. Seus captores, oficiais treinados pelo Exército, queriam virar sua cabeça, transformá-la numa informante para depois soltá-la, como uma infiltrada. Se não tivessem sucesso, matavam-na, como fizeram com vários outros.

Mas Inês sobreviveu e pôde reconstituir parte de sua saga. Foi preciso o reconhecimento do estupro sofrido por uma mulher em um cárcere privado da ditadura para que a Lei da Anistia fosse vencida. Há 40 anos, desde que foi promulgada, ela mantem sob sua proteção todos os acusados de crimes de tortura, assassinato e desaparecimento praticados durante a o regime. De maio a agosto de 1971, a estudante depois historiadora Inês Etienne Romeu permaneceu sequestrada durante 96 dias na Casa da Morte, uma prisão clandestina mantida pelo Exército em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Única sobrevivente do terror estatal, ela saiu de lá destroçada, depois de seviciada torturada e humilhada. Oito anos depois, conseguiu denunciar seus algozes.

Entre eles “Camarão”, o cabo reformado do Exército Antônio Waneir Pinheiro de Lima, que não foi o único, nem o primeiro nem o mais ilustre dos agentes que abusaram de Inês. Era apenas o caseiro. De suas feições e de seu primeiro nome, ela se lembrava. Acusado pelo Ministério Público Federal de sequestro, cárcere privado e estupro, “Camarão” tornou-se réu do primeiro processo criminal contra um militar ocorrido durante o período da ditadura. A denúncia foi acolhida semana passada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por 2 votos a 1.

Sensível ao tema, a desembargadora Simone Schreiber, relatora do processo proferiu voto decisivo. Segundo ela, O Brasil é signatário de tratados internacionais que reconhecem o estupro, a execução sumária e a tortura, cometidos em um contexto ditatorial, como crimes contra a humanidade. Portanto, imprescritíveis e inanistiáveis. A magistrada entende que há uma relutância do judiciário brasileiro em lidar com o tema, criando uma situação que deixa consequências graves.

Este foi o argumento central em que se baseou o MPF. Para o procurador Sérgio Suiama, um dos responsáveis pela denúncia e especialista em Justiça de Transição, o caso de Inês é emblemático. Há o recorte de gênero, uma violência especifica praticada contra a mulher. Inês estava presa, privada de liberdade em um cárcere clandestino e foi estuprada por um agente da ditadura militar. Este crime não está protegido pela Lei de Anistia. A denúncia por estupro mostra claramente que a repressão política extrapolou os limites da legalidade no enfrentamento da oposição. Segundo Suiama, no caso de crimes internacionais cometidos por brasileiros o Brasil tem obrigação de punir, como este da acusação de estupro, cárcere privado e sequestro contra Inês Etienne Romeu.

Na Casa da Morte - uma sinistra sucursal do DOI-Codi, a nave central da tortura, situada dentro de um quartel do Exército, na Tijuca, os agentes tinham licença para matar. Antes, serviam-se com sadismo de seus prisioneiros, vitimas de uma violência diária, banal, praticada com requintes de doentio prazer, com o objetivo de lhes tirar os últimos resquícios de humanidade. Ao final daquele ritual de horrores, eles seriam transformados em informantes ou desapareciam simplesmente.

A história da Casa da Morte, suas infâmias e atrocidades, foi reconstituída por centenas de depoimentos e entrevistas, trabalho de jornalistas, procuradores do ministério público e pesquisadores das comissões da Verdade, nacional e estaduais. Mostram que o sargento reformado “Camarão”, até agora réu solitário, não está só. Inês foi torturada e seviciada por oficiais militares, comandados pelo então coronel Cyro Guedes Etchegoyen, do Centro de Informações do Exército, codinome “Dr. Roberto”, que exercia a função de “tutor” da presa.

Entre os oficiais militares do CIE que trabalharam na casa de Petrópolis, usando nomes de guerra de “doutores”, estavam o coronel da extrema direita Freddie Perdigão Pereira, o Dr. Nagib, o tenente coronel Orlando Rangel, o Dr. Pepe, e o 2º tenente Amílcar Lobo, o Dr. Carneiro, este médico com diploma. Todos identificados com comprovada passagem por atos de tortura e terrorismo, nenhum deles condenado.

Liberada depois de três meses e duas tentativas de suicídio, Inês era outra pessoa, magérrima, quase uma autômata, um verme, com ela própria definiu. Fingiu perante o seu tutor que aceitara tornar-se informante, mas solta buscou refúgio entre seus familiares em Belo Horizonte. Durante o tempo em que esteve incomunicável em Petrópolis, memorizou o número do telefone da Casa, repetido por alguém que atendeu a uma chamada. Através dele, conseguiu localizá-la anos mais tarde.

Em 1979, já em liberdade, depois de passar sete anos na Penitenciária Talavera Bruce, em Bangu, no Rio de Janeiro, ela denunciou a existência do centro de tortura e morte de Petrópolis em depoimento a Eduardo Seabra Fagundes, então presidente da Ordem do Advogados do Brasil Em carta escrita em papel timbrado da OAB, descreveu as atrocidades. Suas anotações também ajudaram a identificar nove militantes revolucionários assassinados e desaparecidos no local, enterrados até hoje não se sabe onde. Fernando Santa Cruz, cuja ossada Bolsonaro diz saber onde está, pode ser um deles.

Inês chegou aos 72 anos. Faleceu em abril de 1975, de insuficiência respiratória. De seu epitáfio poderia constar que percorreu um mundo amargo e enfrentou barbaridades pessoais e coletivas. Passou por ruínas, por um calabouço, sofreu traumas. Conseguiu manter sua humanidade. E não houve desesperança.

Recebeu em 2009 o Prêmio de Direitos Humanos, na categoria Direito à Memória e à Verdade. O imóvel da Casa da Morte em Petrópolis foi tombado, destombado e retombado. Amigos criaram O Grupo Inês Etienne Romeu que está em campanha coletiva de levantamento de recursos para desapropriar a casa, com tudo o que está guardado dentro: os gritos, os sussurros, as lágrimas, as infâmias, as fezes, as dores, a ternura, a grandeza, as insônias e os fantasmas que estão lá trancados. E transformá-la num centro de Memória Verdade e Justiça.

*Jornalista e escritor