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Peronismo embala eleição argentina

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Ao se aproximar de uma das disputas eleitorais mais polarizadas de sua história, a Argentina continua mergulhada numa crise econômica profunda, com taxas recordes de queda do PIB (2,5%) e alta de inflação (47,6%) no ano passado. Em outubro, os argentinos escolherão entre a reeleição do presidente Mauricio Macri, o liberal direitista responsável pela recessão, e os continuadores do projeto kirchnerista que governou entre 2003 e 2015, representados pelos peronistas Alberto Fernandes, candidato a presidente, e Cristina Kirchner, vice. Acima de todos, paira a imensa sombra do general Juan Domingo Peron (1895-1974) três vezes eleito presidente, exilado, criador de uma liderança emblemática que se confunde com o tango na alma da nacionalidade.

Na Argentina ou se é peronista - um sentimento difuso que vai da extrema esquerda à extrema direita com o mesmo fervor - ou não. A exceção de Macri, todos os candidatos se apresentam como peronistas na acirrada eleição presidencial de outubro, decisiva para o futuro político da América Latina. Esperto, o presidente chamou para seu vice o senador peronista Miguel Angel Pichetto, buscando o voto popular e apoio no Congresso. A ex-presidente Cristina Kirchner e seu chefe de gabinete (também de Nestor) o advogado Alberto Fernández, representam a ala majoritária do peronismo.

Eles lideram as pesquisas com uma diferença de 5 a 9 pontos de vantagem sobre a chapa de Macri. As mesmas pesquisas de opinião indicam altos índices de indecisos, cerca de 40%, e de rejeição, tanto a Cristina quanto a Macri. Não escapam da sina e também são peronistas os integrantes da terceira chapa, o economista Roberto Lavagna, ex-ministro da Economia no início do governo Kirchner e seu vice, o governador da província de Salta, Juan Manuel Urtubey.

Em sua longa atividade de mais de 40 anos, que inclui o exílio e a volta ao poder, Peron seduziu os argentinos com seu carisma, uma politica nacionalista de alianças com militares e lideranças sindicais e sua oratória populista do balcão da Casa Rosada. Para isso, contou com a forte presença e liderança de sua segunda mulher, Evita Peron. Em torno do caudilho que se apresentava de uniforme militar, havia espaço para a atuação de diversas tendências formadoras. O próprio Peron definiu uma vez o movimento como um saco de gatos: quando pensam que estão brigando eles estão se reproduzindo.

Diz a lenda que retoca sua biografia que em outra ocasião, durante uma reunião com a direção dos Montoneros, grupo peronista de extrema esquerda, o general foi cobrado sobre a presença de corruptos e fascistas no seu governo. Com tranquilidade e ares paternais, ensinou aos guerrilheiros que “se nos uníssemos apenas aos bons seríamos tão poucos”. Com arguta percepção, investiu na exaltação e difusão do tango como um dos símbolos da nacionalidade argentina. Aproximou-se do grande compositor Discépolo, um anarquista que aderiu ao peronismo e introduziu uma temática social nas letras do tango com o seu “Cambalache”. E o tango deixou de ser apenas uma crônica popular e melancólica da vida cotidiana, ou “um pensamento triste que se dança”, como o definiu o escritor Ernesto Sabato.

As ambiguidades herdadas do velho caudilho permeiam os políticos argentinos. Quando assumiu em 2015, Mauricio Macri prometeu zerar a pobreza. A seis meses do fim de seu mandato, ele triplicou-a. Com 4O milhões de habitantes, a pobreza atingiu 32% da população, cerca de 14 milhões de pessoas, decretando o fim da soberba de sua classe média engravatada. A recessão já perdura há quatro trimestres consecutivos, criando quase 2 milhões de desempregados.

A partir de maio a economia deu uma trégua e Macri pode respirar aliviado. Com um empurrão do presidente Trump, o FMI autorizou o Banco Central a utilizar os dólares do resgate financeiro para interromper a queda do peso, grande trauma do país. Seu amigo Bolsonaro está ansioso para ajudar e evitar o surgimento de “uma nova Venezuela no continente”, segundo disse em visita a Macri, em Buenos Aires. Para o ex-capitão, uma Argentina kirchnerista, com Cristina de vice mas desfrutando de grande poder pode se constituir num sério problema a sustentabilidade de seu governo.

O legado de horror deixado pela ditadura continua assombrando o país e é um dos temas da campanha eleitoral. Na semana passada, a presidenta das avós da Praça de Maio, Estela de Carlotto, anunciou a restituição do neto 130 roubado durante a ditadura militar (1976/83) As avós estimam que cerca de 500 crianças cresceram sem conhecer sua identidade. Javier Matias Darroux Mijalchuk, 42 anos, o neto 130, tinha quatro meses quando desapareceu. Presa e assassinada, sua mãe estava grávida. Ele agora procura reconstituir a história dos pais, montoneros peronistas, e descobrir seu possível irmão ou irmã. Crimes hediondos que exigem do governo a ser eleito apuração e compromisso com sua punição.

*Jornalista e escritor