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Um cinema de cinzas e utopias

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São dois filmes de duas mulheres que cresceram durante a ditadura. A militância, a prisão, a clandestinidade e o exílio de seus pais afetaram diretamente suas vidas. Suas lembranças deste passado recente detêm segredos que aos poucos são revelados. Constituem parte de uma memória que ganha conotações políticas ao fortalecer o movimento de resistência à negação da história do Brasil, praticada por esse governo que celebra a tortura, estigma maior da ditadura. Há momentos em que os retratos que elas fazem são delicados, mas a tensão pulsa o tempo todo, a violência subjacente explode em imagens assustadoras, espalhando as cinzas e as ruínas dos sonhos de mudanças acalentados. Não é pouco, e dá tristeza.

Os dois filmes se complementam ao abordar ângulos diferentes do período e põem em destaque uma geração de transição que sofreu de forma intensa, real e psicológica, os efeitos das brutalidades do regime. Uma geração de jovens que permaneceu em silêncio. Muitos deles não conheceram os pais, outros têm pais desaparecidos até hoje, e outros foram levados ainda crianças para o exílio. Um destes meninos que nunca vira o pai um dia pirou quando lhe mostraram uma foto de um garoto na praia e lhe disseram: este é seu pai. Diante do absurdo ele reagiu: mas como, se ele é mais novo do que eu?

Tenho três filhos desta geração. Leonardo (Zino), Flávia (Brancaleone) e Ana (Anita). Flávia, uma roteirista que perdi muito jovem, nasceu clandestina com a mãe procurada pela repressão usando nome falso no hospital. Zino viajou quilômetros com a avó escondido dentro de um ônibus para escapar da prisão e Anita via-se obrigada a contestar na escola que os pais não eram terroristas, mas sim jornalistas e professores.

Muitas vezes sentiram-se humilhados ao ter que explicar para os colegas e professores porque o pai estava preso. Flávia escreveu uma vez em seu Facebook. “Sou filha de ex- militantes e lá em casa política sempre foi assunto e, muitas vezes, tema de acaloradas, porém produtivas discussões. Talvez por isso me emocione tanto ao ver minhas filhas, amigos e a garotada toda se mobilizando, descobrindo que tem voz e que pode fazer diferença na história do país”.

Essa angústia e essa busca estão nos dois filmes, mais em “Deslembro”, da gaúcha franco-brasileira Flávia Castro, 54 anos, do que em “Democracia em Vertigem”, da mineira Petra Costa, 35 anos, produzido pela Netflix. Visceralmente político, o documentário de Petra, nome que homenageia Pedro Pomar, militante chacinado pelo Doicodi, flerta com a tragédia shakespeariana. Com grande coragem pessoal e liberdade de ação ela se coloca como narradora, com uma voz que suscita incômodo, e entrelaça os acontecimentos de sua vida pessoal e familiar com a tumultuada história recente do país. Neta de um rico empreiteiro investigado na Lava Jato e filha de militantes que se integraram à luta armada, que em dado momento se exilaram.

Numa dramaturgia vertiginosa e visceral, o documentário acompanha o desmoronamento do sonho nascido com o surgimento de Lula nas greves sindicais do ABC. Costura e funde imagens inéditas, que passam pela criação e ascensão do PT, as multidões nas ruas a partir de 2013, o interior deserto dos palácios, as expectativas e frustrações da rendição do PT à velha politica dos conchavos e de corrupção da oligarquia dominante. Até o impeachment de Dilma, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro.

São de arrepiar as faces de Dilma e Lula em momentos dramáticos. Ela na sala reservada do Alvorada, ele no sindicato dos metalúrgicos cercado pela massa antes de se entregar à Polícia Federal. Intercalando entrevistas com os envolvidos e resgates factuais, embalado pelas Bachianas de Villa Lobos e o Canto de Ossanha, de Baden e Vinicius, “Vertigem” conquista também os espectadores pelo belo trabalho de edição.

Vem de Paris, da trajetória dos exilados, o filme de Flávia Castro, “Deslembro,” com esse titulo enigmático que tem na memória sua chave de interpretação. Levada para o exilio com os pais, que fugiram do país em 1972, ela morou no Chile, Argentina, Bélgica e França. Só retornou em 1979, com a anistia. O eixo de seu longa está em sua historia pessoal ficcionalizada. Flávia é filha de militantes políticos. Seu pai foi morto em circunstâncias suspeitas em Porto Alegre, aos 41 anos, em 1984. A angústia desta situação virou o roteiro de seu primeiro filme, o premiado documentário “Diário de uma busca”, em que ela investiga a morte do pai.

Depois veio “Deslembro”, um retrato delicado de um período de transições em que a violência está presente nas entrelinhas, na busca da adolescente Joana (Jeanne Boudier em ótima interpretação) pela história da família e o paradeiro do pai. O encanto do filme está nas mudanças e descobertas na vida dos filhos provocadas pelo retorno do exílio. Aí entra a memória e a figura do pai ausente, que encarna o desaparecido político, uma das aberrações deixadas pelo entulho da ditadura.

Flávia e Petra fazem com seus filmes uma conexão catártica com o momento de turbulência vivido pelo país, em que a perda de confiança na democracia favorece a instalação de regimes autoritários.

*Jornalista e escritor

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coluna | utopia