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O Cabaré da Lava Jato em chamas

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Como se fosse um dos espetáculos indicados para concorrer ao prêmio maior da temporada de 2019 da Broadway, no quesito de melhor partitura original, ‘A trama da Lava Jato’ (nome provisório) encenada pelos comediantes de Curitiba, deu uma guinada surpreendente em seu roteiro com a entrada em cena de um novo personagem, o editor do Intercept. Com ele vieram à luz conversas e mensagens confidenciais trocadas entre os principais atores da Lava Jato curitibana. Nos bastidores, por baixo dos panos da espetaculosa operação que prometia varrer a corrupção do país, havia uma articulação secreta com objetivos políticos de longo alcance.

No momento mais dramático da encenação até aqui, o público fica sabendo que os personagens em ação, cada um tocando com virtuosismo seu instrumento, na verdade estavam representando. Durante todo o primeiro ato o elenco, composto por altos funcionários da justiça, comportou-se de maneira afinada, com os atores muitas vezes aplaudidos em cena aberta. È verdade que dois coadjuvantes colocados fora de cena, a imprensa e órgãos da cúpula do poder judiciário, invisíveis para o público, ofereceram cobertura decisiva para êxito da farsa, apoiando e incensando episódios que transgrediam a ordem legal e violavam condutas éticas.

O primeiro ato fecha de forma apoteótica. A operação se consagra ao decidir o pleito presidencial, elegendo um dos candidatos e levando para cadeia o outro, favorito nas pesquisas. Durante todo o ato sobe o tom da música do compositor alemão Kurt Weill, consagrado com as músicas de seu Cabaret na Broadway, em 1963. No palco personagens gesticulam, correm de um lado para o outro, saem em capas de revistas, surgem de smokings em festas de celebridades em que são condecorados. Cenas que se alternam com despachos em seus gabinetes para ordens de prisão, conduções coercitivas, delações premiadas e gravações telefônicas ilegais, tudo mostrado ao vivo pelos telejornais.

Há uma variedade de enredos paralelos que se sucedem no palco, exigindo mudanças de cenário a todo momento, mas preservando o fio condutor da história. Para os críticos, o espetáculo pode ser visto como uma obra aberta em construção, na fronteira entre a ficção e a realidade. Seu conteúdo explosivo e seu desfecho imprevisível ameaçam por fogo no palco da Broadway, com novas revelações que podem levar ao descredito personagens que chegaram à categoria de semideuses, homens vestidos em suas togas pretas e falando um português arrevesado.

Numa linguagem crua, o musical segue num crescendo. Nos primeiros diálogos fala-se muito numa república de Curitiba, apresentada como uma impoluta senhora que tem a chave da interpretação das leis, dotada de poderes para prender, soltar, denegrir e banir pessoas da vida pública. No inicio do segundo ato há uma mudança de percepção. A entrada em cena de Mr. Intercept, um advogado negro homossexual, interpretado pelo ator Glenn Greenwald, causa uma total reviravolta. Ele começa a vazar para o público mensagens e conversas secretas dos homens da lei. Surgem novos protagonistas, o cenário se transforma numa lona de circo e o que se vê no palco é um iluminado Cabaré, onde antes estava a austera Força Tarefa da Lava Jato.

No comando de suas operações, no centro do picadeiro, o celebrado astro Sergio Moro, no papel do juiz federal responsável pelos processos. Como coadjuvantes e cúmplices um seleto grupo de procuradores da República, afinando as cordas de seus instrumentos. Situados em naipes distintos da orquestra, um não poderia invadir a área dos outros, segundo o maestro condutor. Mas a ordem é desrespeitada e o que se vê é uma grande lambança de vozes cruzadas.

O principal interlocutor do ex-juiz Moro, que virou ministro da Justiça do novo presidente da República, é o coordenador da Força-Tarefa, interpretado pelo procurador Deltan Dellagnol. Vestidos em suas becas pretas, outros procuradores dançam em movimentos coordenados, ao som da “Ópera dos três vinténs” peça teatral do dramaturgo Berthold Brecht com música de Weill. Em seu primeiro momento solo, Dallagnoll demonstra ser um ator inexperiente. Chama para si as luzes para uma entrevista coletiva no canto direito do palco. Seu trunfo é um Power Point para exibir as ligações do ex-presidente preso com o esquema de corrupção numa petrolífera. Apresentação bisonha que quase desmonta a operação. Os atores se desentendem e ouvem-se gritos na plateia.

As labaredas atingem as lonas do Cabaré curitibano quando Mr. Intercept, detentor de um prêmio Pulitzer, volta ao palco. Vestido como se fosse um arlequim adornado com um chapéu de três pontas, Greenwald, o advogado negro, sobe os degraus de um escorrega até se equilibrar em cima e começa a cantar em tom operístico. “Só não viu quem não quis ver/ os deslizes do herói e seus métodos/ os excessos marcantes dos grampos/os desatinos e o fanatismo no submundo do reinado do juiz/ aclamado como um deus”

As cortinas fecham, pausa para o terceiro ato. No momento o que se sabe é que o Cabaré está em chamas. Novos vazamentos das conversas são aguardados. O público não se arrisca a prever o final, que poderá ser trágico ou cômico.

*Jornalista e escritor

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coluna | jato | lava