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De Carcará a Bacurau

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Um filme do gênero fantástico, que mistura faroeste, aventura e violência, que lembra o Brasil de hoje em muitos aspectos, passado uma cidadezinha do sertão pernambucano com o estranho nome de “Bacurau”, ganhou o prêmio do júri do Festival de Cannes, em sua 72º edição, no último fim de semana. Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles construíram uma sátira violenta que fala de um vilarejo invadido por agentes estrangeiros, dividido e armado. Uma ficção que tem tudo a ver com esse país real conflagrado, em marcha acelerada para a descrença, tombando novamente nos braços de um governo autoritário e populista.

Em Cannes o cinema nacional recebeu uma consagração inédita, logo depois de o governo anunciar, através da Ancine, a suspensão de recursos para a produção audiovisual. Além de “Bacurau”, obteve o prêmio de melhor filme da seção Um Certo Olhar, mostra paralela à disputa principal, com “A vida Invisível de Eurídice Gusmão”, do cearense Karim Aïnouz. Uma adaptação do romance de Martha Batalha, a trama gira em torno de duas irmãs que são separadas no Rio de Janeiro na década de 50. Enfrentam na vida situações difíceis e têm o seu destino marcado pelo machismo institucional. Fernanda Montenegro dá um show. Trata-se dos dois prêmios mais importantes da seleção oficial.

Num país em que a cultura está sendo desmontada por um governo populista de direita que concentra seus ataques contra as instituições, em especial a educação e a cultura, é impressionante que resista e tenha sido o quarto país com maior participação na mostra, com seis filmes no total. Cannes é o principal festival de cinema do mundo. Críticos assinalam que com estes prêmios o cinema brasileiro dá mostras de que está entrando num novo ciclo de reconhecimento internacional. Nas décadas de 1950 e 60 despontou com “O Cangaceiro”, venceu a Palma de Ouro com “O pagador de Promessas”. Depois vieram “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos e “Deus o Diabo na Terra do Sol”, já na fase do cinema novo liderado por Glauber Rocha.

São duas aves rebeldes. Bacurau é o nome de um pássaro de bico curto e negro, de plumagem marrom com manchas brancas e cinzas, comum em bordas de florestas e capoeiras. Sai à noite sozinho para se alimentar de insetos e outros bichos pequenos. Cultiva a rebeldia, assim como seu antecessor no cenário artístico nacional. Carcará é uma espécie de ave de rapina, coberta por um manto negro com penas brancas e vermelhas no pescoço. Tem o bico adunco e um majestoso solidéu preto sobre a cabeça.

Carcará, a música, letra do maranhense João do Valle, ficou célebre em 1965, quando foi apresentada por Maria Bethânia no show “Opinião”, em Copacabana, por onde passaram também Zé Kéti e Nara Leão. Sofreu censura, mas conseguiu permanecer meses em cartaz. Empolgante na voz de Betânia e João do Valle, a letria dizia: “Lá no sertão é um bicho que avoa que nem avião/ num vai morrer de fome/ pega, mata e come”. Esse refrão do ‘pega, matá (como se fosse acentuado) e come’ era cantado nas ruas. As sessões terminavam numa verdadeira numa orgia, momento em que os jovens desabafavam e protestavam contra a ditadura militar

Chico Buarque também cantou “Carcará” com João da Vale. O mesmo senhor Francisco Buarque de Holanda que acaba de ganhar o Prêmio Camões 2019, organizado pelo Brasil, Portugal e países africanos de língua portuguesa. Chico é um cidadão de talento que incomoda desde esses tempos. Vencedor de dois prêmios Jabutis, mestre em seus textos para teatro, ópera, romance, poesia e letras de canções. Como artista, misturou-se à história do país com suas criações. Fez jus ao prêmio, enriqueceu o patrimônio literário e cultural do idioma. Antes dele, o último brasileiro a vencer foi Raduan Nassar, de “Lavoura Arcaica” e um “Copo de Cólera.”

Sem conhecer Nassar, (terá lido algum autor brasileiro?) e com um copo de cólera na mão, Jair Bolsonaro, o pastor direitista radicalizado, virou as costas para o prêmio Camões de Chico Buarque. Com o mesmo desprezo e ignorância tratou as vitórias de Kleber Mendonça Filho e Karim Aïnouz em Cannes. O cinema brasileiro é bom de briga. Artistas e trabalhadores do audiovisual receberam os prêmios como incentivo num momento em que as atividades culturais estão no centro dos ataques do governo populista. Partiram para destruir universidades, suspender pesquisas e cortar bolsas de pós-graduação. Ações que repugnam a consciência civilizada.

No domingo, 26, as energias de Bolsonaro estavam voltadas para a marcha sobre Brasília convocada para acelerar a escalada de violência explicita desencadeada por suas milícias radicalizadas. Não foi o que se esperava. Perdeu em muito para os protestos pela educação, de 15 de maio, que ocorreram em mais cidades e em número superior. Os que saíram às ruas vestindo a camisa da seleção davam a impressão de participar de um desfile kitsch, algo de mau gosto, cafona. Vi-os no calçadão de Copacabana. Pouquíssimos jovens, pessoas de meia idade para cima, exibindo descontrole emocional, agressividade e ressentimento. Mais para um exército do lumpesinato, como escreveram Gilberto Maringoni e Artur Araújo, em artigo no “Le Monde Diplomatique”.

*Jornalista e escritor

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Bacurau | coluna