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Emicida leva Exu para o palco e faz subversão

JB -
Álvaro Caldas
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Nada melhor para encerrar este ano da peste, pleno de desgraças e infortúnios, transcorrido entre corredores de hospitais e o silêncio dos cemitérios, nos limites de um estado policialesco a nos atormentar, do que assistindo à obra de um artista subversivo, dotado de delicadeza e vigor, sobre a impressionante história do racismo estrutural brasi-leiro. No documentário AmarElo - É tudo pra ontem, disponível na Netflix, o rapper Emicida não apenas nos mostra que os pretos têm alma, no que os brancos não acreditavam, como são responsáveis pela criação de uma parte considerável da cultura, da infraestrutura, dos sons e da riqueza deste país.

Num retrato que pode ser chamado de revolucionário por sua dimensão histórica e artística, ele nos seduz e nos comove com a delicadeza de um Paulinho da Viola e a clareza e o ativismo politico de um Abdias Nascimento e uma Lélia Gonzalez, entre tantos outros negros que são retirados da invisibilidade a que o “cordial” e infame racismo brasileiro os condenou. Deslocando-se pelo palco do Theatro Municipal de São Paulo, onde seu show foi realizado em novembro de 2019, Emicida faz a apresentação e homenageia a trajetória de lutas de cada um dos heróis e divindades invisíveis

O show é transformado no eixo central do documentário, dirigido por Fred Ouro Preto. E funciona como uma extensão de seu álbum AmarElo, grande vencedor do Grammy Latino na categoria melhor álbum de rock ou música alternativa em língua portuguesa. Para o rapper, ocupar o palco do Municipal foi a realização de um sonho de gerações. Ver lá pela primeira vez sua avó de 80 anos, assim como muitos moleques e meninas negras da periferia, foi uma conquista. Algo como o lançamento de um manifesto musical que anunciasse o fim do racismo, esse espectro que há séculos ronda o Brasil.

Nele, o personagem e narrador põe em cena o inacreditável espetáculo de um país de maioria negra que eliminou os pretos de sua história. Puta merda, parece dizer o lúcido e corajoso condutor, nós estivemos em todos os lugares, fizemos todas as tarefas, em especial as mais duras. Limpamos as casas, carregamos tijolos e sacos de cimento, fizemos música e filosofia, escrevemos livros, dançamos e cantamos nos palcos, mostramos como se faz o amor, mas os negros nunca puderam entrar neste teatro.

O que ele consegue fazer não é pouco. De repente estavam todos lá: Ismael Silva, Pixinguinha, Ruth de Sousa, Leci Brandão, Adorinan Barbosa, John Alfie, Marielle, numa participação especial, Nélson Cavaquinho, Cartola, Elza Soares, Carolina Maria de Jesus, Machado de Assis, Simonal. Solidários, o escritor Mario de Andrade e a atriz Fernanda Montenegro. Faltou uma menção ao brilhante escritor e ativista negro e gay americano, James Baldwin, referência de outro documentário marcante, “Eu não sou seu preto”, de Raoul Peck.

Entre idas e vindas aos estúdios de gravação, Emicida desfila pelo palco e canta com artistas gays e trans, porque entende que esta é uma luta de afirmação de todos juntos. Como fizeram Lélia Gonzales e Abdias Nascimento, ao defenderam a integração dos excluídos, independente de gênero, classe ou raça. O fator classe social deixa de ser determinante na luta por transformações sociais e políticas.

Nada melhor para amenizar o peso de um ano massacrante e negativista do que assistir ao tocante documentário de um artista subversivo. Emicida é o cara. O nome dele é Leandro Roque de Oliveira, 35 anos. Nasceu no Jardim Cachoeira, zona norte paulistana. Sua mãe, Jacira, presente no Municipal, foi empregada doméstica. Perdeu o pai, alcoólatra, aos seis anos. Sua presença no cenário nacional trás a mensagem de que o tempo das vanguardas políticas e culturais mudou. Há novos atores no terreiro.

A luta por transformação social, contra preconceitos e exploração econômica, passa a ter cor e gênero, a classe social não é mais o fator exclusivo. O proletariado, na realidade atual, seria constituído pelo exército de entregadores de comida, remédios e mercadorias, que rodam as cidades mascarados e de capacete, montados em suas motos, Sem vínculo empregatício ou carteira assinada. O exército de Brancaleone do Ifood e do Uber eats. Em sua maioria homens pretos, municiados de celular e mochilas estufadas, tornaram-se os novos donos das ruas, descortinando talvez um novo mundo que permanece insondável, sob o olhar incrédulo dos porteiros diante dos prédios.

Enquanto isto, voltando ao início deste texto, vemos a cada dia Bolsonaro e seus filhos, seus milicos e apaniguados, seus ministros e delegados, transformarem o Brasil num estado policial como há muito não se via no mundo. Em sua definição clássica, uma organização estatal baseada no controle da população, principalmente de opositores e dissidentes, por meio da polícia política, forças armadas e outros órgãos de controle ideológico e repressão.

Como já vivi numa ditadura assumida, descortino que um estado policialesco pode ser até pior. Que o diga húngaro Imre Kertész, premio Nobel de literatura, que dá o testemunho das engrenagens de um Estado deste tipo em seu livro “História policial”. Horror e o suspense vivido por seus personagens. Jornais noticiam que a Abin fez relatórios para defender Flávio, o filho, flagrado na “rachadinha”. Outra investigação revela que Bolsonaro usa a Agência para espionar adversários do governo. E numa outra ação de caráter policialesca, jornalistas foram colocados numa lista de suspeitos.

A ministra Cármen Lúcia, do STF, deu prazo para que o general Augusto Heleno, do GSI, e o diretor da Abin, Alexandre Ramagem, expliquem à sociedade a elaboração dos relatórios secretos. O estado policial brasileiro avança com a cobertura das Forças Armadas, que antes já haviam dado sustentação à ditadura, com todas as violações de direitos individuais, prisões, torturas e assassinatos.

*Jornalista e escritor