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O poeta que viu peixinhos nos olhos de Clarice

JB -
Álvaro Caldas
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Clarice tinha um coração selvagem. Ao mesmo tempo era discreta, introvertida, esquisita, impulsiva (segundo ela mesma) enigmática, falava com os bichos, tinha as maçãs do rosto salientes e peixinhos nadando nos olhos (descoberta de um poeta). A torrente de adjetivos usados para descrevê-la costuma sempre terminar com bela e selvagem. Não se pode esperar coerência de Clarice. Os homens que se aproximavam ficavam hipnotizados. Nada disto a afetava. Com uma cigarrilha entre os dedos, ela parecia afetada, mas não era. Se dizia uma mulher simples, dona de casa com seus dois filhos para criar.

Escrevia feito uma possessa, anotando frases em cadernetas ou apagando e reescrevendo compulsivamente em sua maquinha portátil, enquanto os cigarros queimavam no cinzeiro. Estreou aos 23 anos com “Perto do Coração Selvagem” causando um alvoroço nas rodas literárias do Rio e São Paulo, então dominadas por escritores homens. Críticos disseram que o livro era hermético, intenso e subjetivo. Clarice Lispector era isso mesmo. Nasceu com o nome de Chaya, em 10 de dezembro de 1920, numa pequena aldeia na Ucrânia, três anos depois da revolução bolchevique. Seus pais judeus fugiram trazendo as três filhas. Foram parar em Maceió, depois Recife e finalmente Rio de Janeiro.

Hoje, dia de publicação desta coluna, estaria fazendo redondos 100 anos, motivo de toda essa exaltação cultural que extravasa as fronteiras do país. Com seu rosto anguloso, seus ares enigmáticos, seus impasses, seus silêncios, suas paixões e desencantos, ela está visível em todos os cantos Assim como em seus livros, os filmes e peças neles baseados, as biografias e as cartas publicadas, toda sua trajetória de vida está nas capas e suplementos dos cadernos culturais dos jornais, das revistas, na televisão.

Clarice tornou-se, neste centenário, uma grande estrela, a mais reluzente no universo literário brasileiro, logo depois de Machado, o eterno bruxo jamais destronado. Chegou a hora em que ela própria se transformou numa estrela, como se reafirmasse o titulo de seu último livro, de 1977, pouco antes de sua morte, quando já era reconhecida. Mas nada na literatura de Clarice é fácil. Sua desajeitada personagem, a nordestina Macabéa, protagonista de “A hora da Estrela”, tem um destino cruel que a autora havia imaginado para ela mesma, segundo contou numa entrevista. A ideia de morrer num atropelamento lhe ocorreu depois de uma conversa com sua cartomante, no Méier .

Em 1943, casou-se com o diplomata Maury Gurgel Valente, viveu durante 15 anos no exterior, uma vida burocrática, cerimoniosa e tediosa, em que ela precisava representar um papel. Clarice era burguesa, mas nada convencional. Queixou-se de depressão em carta às irmãs. Em 1959 se separou, abandonou o exílio e voltou a viver no Rio com os dois filhos. Começa a fazer crônicas para o Jornal do Brasil, levada pelas mãos do mestre Rubem Braga, e inicia um processo de análise com Katherine Kemper, respei-tada psicanalista da época.

Em 1964 provoca uma explosão literária com a publicação de “A Paixão segundo GH”, (minha edição é da Nova Fronteira, 1979), seu romance mais impactante. Ela confessou que saiu desestruturada da escrita. “Escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém, provavelmente a minha própria”, registrou em “Um sopro de Vida” A Paixão é um livro radical em que há um processo de desmonte da linguagem, momentos de vertigem e transcendência. Clarice já possuía o domínio de técnicas de escritores como Joyce e Virginia Woolf. Faz uso do monólogo interior e fluxos de consciência para representar o mundo psíquico dos personagens, mas não se distancia da realidade.

Neste mesmo ano, 64, uma ditadura suprimiu as liberdades, decretou a censura e sufocou o Brasil. Não há registros de uma voz política de Clarice. Ela não era de assinar manifestos, sabia o que estava acontecendo, mas sempre agiu de forma dissimulada. Em pesquisas na internet, encontrei duas fotos reveladoras de seu mundo.

A primeira em Paris, final da guerra, 1946. Em frente a uma gare, com um cartaz do partido socialista ao fundo, ela e Maury estão de braços dados com o comunista revolucionário Apolônio de Carvalho, herói da resistência francesa, e o jornalista Samuel Wainer. Inverno, foto em preto e branco, todos encapotados. A outra imagem é na Candelária, Rio, passeata dos cem mil em 1968. Toda bonitinha, Clarice está ao lado de Oscar Niemeyer, o pintor Carlos Scliar, a atriz Glauce Rocha, Ziraldo e Milton Nascimento, todos rapazinhos.
Nestes últimos anos, sua vida foi inteiramente devassada com a publicação da biografia do historiador e biógrafo americano Benjamin Moser (Clarice, uma biografia, Cia. das Letras) - já traduzida para várias línguas - que veio se somar à reedição de outras, já existentes. Saiu também o volume “Todas as cartas”, pela editora Rocco. A vida de Clarice caiu na boca do povo e na graça do leitor. Pode se dizer que sua projeção nos meios intelectuais começou quando conheceu o famoso quarteto de mineiros que desembarcou no Rio: Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino. Ficou amiga, fez boemia e trocou correspondência com todos durante anos.

Quem descobriu os peixinhos brincando nos olhos de Clarice foi o poeta e cronista Paulo Mendes Campos, integrante do quarteto mineiro. E quem descobriu esse segredo foi o biógrafo Benjamin Moser. Ele conta que Paulo e Clarice se apaixonaram e viveram clandestinamente um intenso romance no início da década de 1960. Separada, cronista da cultuada revista Senhor, 40 anos, Clarice estava exuberante. Paulo acabara de lançar seu primeiro livro de poemas e mais um de crônicas, Homenzinho na ventania. Mas o poeta era casado com a inglesa Joan Abercombie, precisava se comportar com discrição.

Como um bom repórter, Moser narra sua história com detalhes. Conta que o casal era visto andando pelas ruas do Leme, onde Clarice morava, ou entrando num prédio de apartamentos conjugados na rua Gustavo Sampaio. Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, emprestava o apartamento ao casal. Prática comum na época, em que os motéis eram raros. Tomavam cuidados para não passar em frente à Taberna do Leme, na Avenida Atlântica, porque lá outro escritor famoso do bairro, Nelson Rodrigues, tomava o seu uísque solitariamente. Nelson, que gostava de brincar com os amigos, era bem capaz de torná-los personagens de sua coluna A Vida como ela é, na UH do dia seguinte.

Paulo acabou voltando para Londres com Joan e os dois filhos do casal. Os amantes separaram-se em pleno enamoramento. Clarice sofre, volta a escrever e vai publicar os contos de Felicidade clandestina. Segundo o biógrafo, a jornalista Rosa Cass, grande amiga da escritora, disse que Clarice amou PMC até o fim da vida, em 1977, aos 57 anos

*A história dos peixinhos foi compartilhada por PMC com o poeta Manuel Bandeira.

*Consultei relato de Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura do IMS, para onde foram levados livros e parte dos arquivos pessoais de Clarice Lispector.

*Jornalista e escritor