CULT, POP & ROCK
Luiz, Pete & Ane
Publicado em 26/06/2025 às 10:19
Alterado em 26/06/2025 às 10:39

.
Após um outono molhado e cinzento, o inverno me trouxe, no seu segundo dia, uma manhã de sábado ensolarada e azulada que me atingiu em cheio, em frente de casa, recostado na minha velha cadeira de praia. Um céu majestoso envolvia todo o sítio com um manto azul marinho/montanhês que parecia querer me aquecer e me livrar dos 10º que, aos poucos, bem devagar, atingiram os 20º e me permitiram tirar a camisa e deixar o sol lateral, após o trimestre outonal, queimar levemente a pele branca acinzentada.
Uma rádio americana, captada graças a uma antena mágica que trazinternet para esse fim de mundo maravilhoso em que vivo desde 2017, acabara de tocar um hard rock do AC/DC. Em seguida, suavizando os meus ouvidos, os primeiros acordes do piano quase jazzístico que introduz “Slit Skirts”, uma pequena obra-prima do genial e monstruoso Pete Townshend, me obrigou a parar de observar alguns colibris que bailavam em volta de pequenas pétalas vermelhas das inúmeras flores nascidas de uma frondosa planta típica aqui da região e que recebe o brejeiro nome de “Beijo de Moça”.
A voz do guitarrista inglês, que ainda mantém a sua banda The Who na ativa por quase 60 anos, entoando os primeiros versos da canção que fala de Jeanie, uma jovem que não usava saias com fendas, que eu não ouvia desde sei lá quando, me fez recordar de um outro sábado em especial, de fevereiro, do longínquo verão de 1983, quando, no terraçodo sobrado em que morei em um bairro da zona norte do Rio, me refrescava debaixo dos esguichos saídos de uma mangueira, ouvi pela primeira vez a canção de Townshend através do receiver Polyvox sintonizado na Fluminense FM.
Antes do surgimento dessa revolucionária e inesquecível estaçãode rádio, que, durante grande parte dos anos de 1980, rompeu com a caretice das outras FMs, que infestavam nossos ouvidos com músicas repetitivas, de forte apelo comercial, impostas pelas gravadoras e seus indecentes jabás, eu pouco ouvia The Who. Estava entorpecido pelas ondas tsunamis do heavy metal, gênero que dominou o fim dos anos de 1970 e se estendeu até o início dos de 1990. Foi quando surgiu para salvar aquela geração metaleira, meio que perdida, a Fluminense FM, que logo foi denominada "Maldita", criada pela coragem e ousadia do jornalista Luiz Antônio Mello que convenceu os proprietários da velha rádio de Niterói a dar-lhe uma chance para repaginá-la.
Após o sinal verde concedido, Luiz meteu o pé na porta e espalhou para milhares de aparelhos de rádios do Rio, dos simples aos sofisticados,as mais incríveis canções de Rock distribuídas durante dias, noites e madrugadas, em uma programação criativa e inovadora, aquecida ainda mais pelas vozes das encantadoras locutoras femininas cheias de bossa, charme e personalidade. E no exato momento de uma década em que o país se livrou de uma ditadura, o rock brasileiro ressurgiu também graçasao comando de LAM à frente de uma nova rádio... de umaoutra Fluminense FM.
Antes de Luiz Antonio Mello – um apaixonado pelo The Who – nos deixar, no final de abril, eu estava pensando em entrevistá-lo aqui para o Jornal do Brasil. Infelizmente, a velocidade das decisões traçadas pelo destino sempre é maior e impediu que o convite fosse feito; e nos vários e-mails que troqueicom o querido LAM durante um bom tempo, sempre, de alguma forma, procurei agradecê-lo por ter me ajudado a conhecer a música de um jeito especial, que fez a minha cabeça e me moldou da metade da década de 1980 em diante. E, talvez, uma das perguntas que eu faria nesse papo registrado e dividido com seus muitos admiradores, seria:
- LAM, você tem noção do quanto, através da rádio que você reinventou e rejuvenesceu, toda aquela geração ouvinte fiel da Maldita foi fortalecida?
E enquanto escrevia a coluna para falar um pouco de LuizAntonio Mello e da nossa saudosa rádio, troquei alguns áudios com Ane, uma grande paixão que vivi durante aqueles fantásticos anos. Uma linda colega de turma da faculdade de jornalismo que, naquele sábado abafado de verão, me ligou, de surpresa, para dizer que estava usando a saia que, dias atrás, eu havia lhe dado no nosso aniversário, que comemoramos na mesma data. No exato momento em que, pelo telefone, a voz da menina que abalou a minha estrutura durante anos, acelerava o meu coração, “Slit Skirst”, a canção do Pete Townshend, o ídolo máximo do LAM, tocava na rádio que ele reconstruiu e nos presenteou... e, 40 anos depois, veio me visitar no início de mais um inverno gelado para aquecer as minhas velhas memórias e uma infinita paixão.