Cult, Pop & Rock

Por CAL GOMES

CULT, POP & ROCK

Meu amigo Affonso

Publicado em 13/03/2025 às 13:22

Alterado em 13/03/2025 às 16:13

Affonso Romano de Sant’Anna fotografado por Marcoz Gomez Foto: divulgação

Em um final de tarde quente de verão, um táxi parou ao meu lado no início da rua Nascimento Silva, na curva que abraça a paralela Alberto de Campos. Do automóvel que surgiu, ainda mais amarelado ao ser envolvido pelo sol forte de janeiro, desceram o escritor Affonso Romano de Sant'Anna e o jornalista Alberto Dines. Estávamos nos primeiros dias do ano 2000 e eu ainda não conhecia pessoalmente esses dois personagens do cenário cultural e intelectual brasileiro que tanto admirava.

Naquele momento mágico que ainda se mantém intacto em minha memória, eu estava em pé na calçada acompanhando garotas e garotos bronzeados que faziam uma "rodinha" de violão e cantavam canções que passavam por clássicos do Milton Nascimento e Caetano Veloso. Cena lúdica e rara naquela rua de Ipanema no início do novo século. Affonso, o mineiro, se aproximou e chamou Dines, o carioca, para assistir ao pocket show improvisado pelos jovens descontraídos, e disse, ao meu lado: "Que maravilha tudo isso. Me faz lembrar alguns momentos nas ruas de minha Belo Horizonte da juventude". Minutos depois, despediu-se de mim, da garotada, e entrou, acompanhado do velho amigo, no prédio em que morava, ali ao lado, encostado ao meu.

Eu havia chegado no bairro em 1999 e não sabia que Affonso era meu vizinho. O encontrei pela primeira vez naquele sarau inusitado, improvisado, e fiz o primeiro dos muitos contatos que tivemos durante os quase 15 anos em que vivi em Ipanema. Fomos vizinhos e mantivemos uma amizade que durou até 2014 quando a distância física da minha saída do Rio e o Alzheimer que o atingiu, aos poucos, nos afastaram.

Resolvi utilizar esse meu espaço no Jornal do Brasil para uma pequena homenagem ao meu querido amigo, que nos deixou na semana passada aos 87 anos. Com inúmeras obras lançadas, foi um brilhante crítico literário e cronista maravilhoso. Presidiu a Fundação Biblioteca Nacional durante seis dos agitados anos de 1990; vinte anos antes, em 1965, lecionou na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, UCLA, EUA, e, tempos depois, dirigiu o departamento de Letras da PUC-Rio.

Acho importante e necessário esclarecer que, ao usar a minha coluna sobre música para escrever sobre um intelectual, escritor, poeta, professor, ensaísta e cronista, que, aliás, durante quatro anos da década de 1980, colaborou com esse jornal, não estou, digamos, "forçando a barra". Mesmo com toda essa extensa vida dedicada à literatura, o poeta também gostava de escrever e, digamos, filosofar, sobre música, como o fez em suas colunas nos jornais e em partes preciosas do seu incrível livro “Barroco - Do quadrado à Elipse”, lançado em 2000 e que me foi presenteado com uma dedicatória carinhosa e generosa. E nas muitas ocasiões em que nos encontramos em Ipanema – em cafés, nos quiosques da orla, nas muitas esquinas do bairro, no meu estúdio de publicidade, quando ele aparecia para papear e levar material para o seu site pessoal que tivemos a honra de produzir –, a música sempre esteve presente em nossos assuntos.

Só de morar anos, ao lado de sua doce companheira Marina Colasanti – que, também, infelizmente, dias atrás, partiu – na Nascimento Silva, na rua mais musical de Ipanema, cantada em prosa e verso por Tom Jobim, e última morada de Renato Russo, que compôs “Que País é Este?”, uma das mais poderosas canções políticas já escritas por aqui, baseada no poema e no título do livro escrito por Affonso, já me dá o direito de homenageá-lo na coluna. E nas várias oportunidades em que eu, um humilde-súdito-mortal, e o poeta, já imortal, conversamos sobre música, foi ele, claro, que melhor se expressava e me fornecia dicas, como a do dia em que deixou um recado na minha secretária eletrônica sugerindo que eu assistisse a um certo show do Rod Stewart, no DVD, em que o cantor interpretava, segundo ele "com um fiozinho de voz", maravilhosamente, standards de jazz.

Nessas várias oportunidades que conversamos sobre música, a mais especial foi no café-padaria Cafeína, na Farme de Amoedo, quando contei a ele, entusiasmado, que no dia anterior havia encontrado Chico Buarque em uma farmácia da Ataulfo de Paiva, no Leblon, e confessei que não tinha tomado coragem para puxar assunto e mendigar alguns minutos para falar sobre “Eu Te Amo”, a minha preferida composta pelo gigante, estupendo, compositor que estava ali, ao meu lado, buscando algo em uma prateleira. Especificamente, eu não queria falar sobre a música maravilhosa criada por Tom Jobim, mas sobre a letra emocionante, cheia de simbolismos, analogias e metáforas escritas por ele, narrando a tristeza de uma despedida entre dois amantes.

Naquela tarde, durante um tempo – e já não recordo a extensão dele –, Affonso e eu ficamos ali, sentados em uma mesa externa, na calçada, como se estivéssemos em um café parisiense, observando as pessoas que saíam e chegavam na praia, ali ao lado, e conversando sobre as palavras garimpadas de uma das centenas escritas por Chico. E ele, com aquela voz potente e suave, firme e musical, me explicou, com o seu vasto conhecimento erudito, o significado do termo "Queimar Meus Navios" e de quando, como, onde e porque surgiu. Um lead jornalístico completo.

E ao chegar ao fim do texto para a coluna, me recordo ainda mais do meu amigo. Especialmente daquele dia, conversando sobre a letra de “Eu te Amo”, e chego à conclusão de que, nesses sete anos em que estou morando aqui no sítio, tão distante do mar de Ipanema, tantas vezes mergulhado por Affonso e Marina, também queimei os meus navios e não consigo mais voltar.

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