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A passeata dos 100 mil mortos de Bolsonaro

Folhapress / Mateus Bonomi -
Bolsonaro exibe caixa do medicamento hidroxicloroquina em Brasília
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O Brasil sofreu enorme comoção em 17 de junho de 2017: um Airbus A320-233 da TAM, vindo de Porto Alegre, não conseguiu frear na pista do Aeroporto de Congonhas (SP), atravessou a avenida Washington Luís e bateu no prédio da TAM Express e em um posto de gasolina, ampliando o incêndio provocado pelo combustível da aeronave. Todos 187 passageiros e tripulantes a bordo e mais 12 pessoas em solo morreram. Foi o maior acidente da história da aviação brasileira.

Pois sexta-feira caíram 5,4 Airbus no Brasil, matando 1.079 pessoas, e não houve tanta comoção. Talvez porque as "quedas de aviões" se tornaram rotina - quase uma paisagem de pano de fundo do governo de Jair Bolsonaro - já não causam espanto e luto. Na quinta-feira caíram 6,2 Airbus, com 1.237 mortes, também sem maiores abalos ou manchetes. As pessoas pareciam anestesiadas pelo recorde da quarta-feira, quando 7,2 Airbus foram ao solo, com 1.437 mortes.

Também na sexta-feira, na Índia, em meio a um temporal, caiu um Boeing com 190 passageiros da Air India Express, que repatriava indianos retidos no Catar por causa da pandemia da Covid-19. Pelo menos 17 pessoas morreram, entre os quais o piloto e o co-piloto, e mais de 100 ficaram feridos, quando o avião partiu ao meio durante o pouso. O primeiro-ministro Narenda Modi demonstrou grande pesar e ordenou severa investigação sobre as causas do acidente.

Estranho, mas no país de Mahatma Gandhi, no mesmo dia, caíram outros "oito aviões", com 937 óbitos, mas a causa foi o novo coronavírus. Sem tanta comoção. Quem sabe porque a Índia, um país que tem a tradição milenar de queimar os mortos em piras, já acumula 42,5 mil vítimas da Covid-19 e pode superar em poucos dias o México (51.311 óbitos) e ameaçar a liderança dos Estados Unidos e do Brasil nesta macabra estatística. Afinal, há pouco menos de 1,4 bilhão de indianos sujeitos à pandemia, que demorou a se espalhar no país – o governo Modi foi muito rigoroso de início, mas não foi possível manter os 1.380 milhões de hindus em casa. Só nos últimos sete dias houve 6.007 óbitos pela Covid-19 na Índia, contra 4.623 vítimas em sete dias no México.

Nos Estados Unidos, de Donald Trump, que liderava até sábado pela manhã a lista funesta - com 160.977 mortos, pelo levantamento da Universidade Johns Hopkins, ou 162.832, no sistema de busca Bing, da Microsoft, que compila dados da OMS, dos Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA, do Centro Europeu para Prevenção e Controle de Doenças (ECDC), e da Wikipédia, além de notícias sobre a pandemia em cada país -, caíram, sexta, "cinco Boeings" com 200 vítimas fatais em cada. Nos últimos sete dias, quase 36 aviões despencaram, acumulando 7.189 óbitos.

O “New York Times” recapitulou, esta semana, quando a nação do Norte ultrapassou 160 mil óbitos, a série de erros de Donald Trump, que em janeiro e fevereiro desdenhou do vírus “insignificante ante o poderio bélico americano”. Está agora ameaçadíssimo de perder a reeleição em novembro para o democrata Joe Biden.

Mas, no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, que também desdenhou do “vírus comunista chinês”, como o presidente americano, está conseguindo superar o desempenho do ídolo americano. Ele próprio, que sempre se manifestou contra o isolamento social e o uso de máscaras, para evitar a propagação exponencial da doença, demonstrando preocupação maior com a economia do que com as vidas humanas, contraiu o vírus. Que contaminou a primeira-dama, Michele, e ainda a quase dez ministros e altos auxiliares.

Com seu modo tosco de tratar a vida humana, a começar com a do próprio presidente da República Federativa do Brasil, Jair Bolsonaro disse que estava mofado, “com mofo no pulmão” - que não foi curado com a hidroxicloroquina, após três semanas de uso, e teve de reforçar o uso de antibióticos. De fato, mofado é seu modo de pensar sobre a maior tragédia brasileira desde a gripe espanhola de 1908. Neste fim de semana, quando o país acumula mais de 100 mil mortos, terão “caído” 500 Airbus A320-233 no país.

A primeira morte de um brasileiro, um paulista que contraiu o vírus na Itália, ocorreu em 17 de março. Foi quando o país aprovou no Congresso o Estado de Calamidade Pública decretado pelo presidente. Menos de um mês depois, em 31 de março, enquanto o presidente e os ministros militares ressuscitavam o movimento militar de 1964, o Brasil acumulou as primeiras 100 mortes. Mas Bolsonaro, seguindo Trump, queria reabrir as atividades na Páscoa (12 de abril). O vírus se impôs. Quando lhe cobraram manifestação sobre as primeiras mil mortes, saiu-se com essa: “E daí, o que quer que eu faça, não sou mágico”.

Realmente, o ex-capitão e ex-deputado não tem dom de prestidigitador, embora tenha feito promessas vãs, através de seu “Posto Ipiranga”, o ministro da Economia Paulo Guedes. Mas, depois de emitir sinais contraditórios contra o isolamento – que acabaram potencializando o contágio Brasil afora e prolongando o impacto negativo na economia e no emprego - demitiu dois médicos do comando do Ministério da Saúde, em plena explosão da pandemia, porque ambos se recusaram a recomendar a cloroquina na terapia de combate ao vírus no SUS, uma vez que pesquisas mundiais e no Brasil não comprovaram sua eficácia, e se arvorou de médico, receitando com o general Eduardo Pazuello, que transformou em interino da pasta da Saúde desde 16 de maio (há 80 dias), o coquetel de hidroxicloroquina e azitromicina contra a Covid-19. Naquele dia, o Brasil tinha 233.142 contaminados e 15.633 mortes.

Como não podia deixar de ser, embora dissesse não ser "coveiro”, tentando transferir a responsabilidade para as 100 mil mortes que o Brasil alcançou neste fim de semana, Jair Bolsonaro e o general Pazuello podem ser comparados aos personagens Dr Jekyl e Mr Hyde, do romance “O Médico e o Monstro”, de Robert Louis Stevenson, que tem brilhante tradução para o português do embaixador Jório Dauster. Ambos podem desfilar com o cortejo dos 100 mil mortos e quase 3 milhões de contaminados. É exagero atribuir tanta culpa a Pazuello. Mas Bolsonaro não pode fugir à responsabilidade por desafiar a ciência em nome da economia (e da eleição de 2022) e ter alongado a agonia da doença e a anemia da economia, com 9 milhões de brasileiros perdendo o emprego e 30 milhões ficando sem atividade, remediados pelos R$ 600 do Auxílio Emergencial. O auxílio, aliás, é uma cópia da ajuda americana. Lá são US$ 600 semanais (R$ 3.247,56) e o programa tende a acabar este mês.

Até o momento o presidente da República não se dignou a fazer pronunciamento de pesar e conforto às quase 100 mil famílias enlutadas (algumas perderam mais de um membro). O drama e a angústia sacudiram a vida de quase três milhões de brasileiros que contraíram a doença. Felizmente, até a manhã de sábado, 2.068.394 foram curados. Mas as famílias de quase 800 mil brasileiros ainda estão com os corações inquietos, torcendo pela recuperação e à espera de algum alento.

Espera-se que o presidente não repita a tosca “live” com um sanfoneiro amador (doublé de presidente da Embratur) tocando “Ave Maria” em homenagem às famílias das primeiras 55 mil vítimas, em 25 de junho, acompanhado por um envergonhado Paulo Guedes...