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O tempo não é senhor da razão

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A maior parte do país ainda está entre entorpecida e indignada ante o conteúdo ventilado da reunião (?) ministerial de 22 de abril no Palácio do Planalto. Levou exatamente um mês até sua divulgação (com cortes) autorizada na última sexta-feira, 22 de maio, pelo ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal (STF). Mas parece que durou uma eternidade, maior que a quarentena a que parte dos brasileiros se submete por conta própria.

Sim, porque pelo que se viu e ouviu da vergonhosa reunião ministerial, a depender do presidente Jair Bolsonaro e de seus ministros, que se reuniram, oficialmente, para debater, entre outros assuntos, o Programa Pró-Brasil, uma série de iniciativas que seriam tomadas pelo governo e o setor privado para reativar a economia, a pandemia parece que não existe.

A questão é que a pandemia da Covid-19, citada “en passant”, só foi tratada valer na fala do recém empossado (em 17 de abril e que deixou o governo em 15 de maio) ministro da Saúde. Nelson Teich, que assistiu boquiaberto, e desconfortável como Sérgio Moro, ao desenrolar da reunião, se posicionou contra o relaxamento do isolamento visando a retomada da economia "enquanto a gente não mostrar para a sociedade (...) o controle da doença (...) qualquer tentativa econômica vai ser ruim, porque o medo vai impedir que você trate a economia como uma prioridade. Então controlar a doença hoje é fundamental", disse o então ministro. E arrematou: "E controlar a doença não significa que a gente vai curar (...) em uma semana, mas que a gente não é um barco à deriva e (...) tem uma estratégia para trabalhar essa a doença, né?”.

Como a reunião ministerial - na qual foram proferidos, em duas horas, nada menos que 34 palavrões cabeludos pelo presidente, seus ministros e dirigentes bancos e autarquias - foi feita na parte da manhã e o Ministério da Saúde só solta o boletim epidemiológico da Covid-19 no começo da noite, vamos trabalhar com os dados conhecidos da véspera. Não, o tempo não é senhor da razão, como gostava de proclamar o ex-presidente Fernando Collor. Dia 21 já havia 43.131 casos reconhecidos e 2.751 mortes pelo Covid-19. Um mês depois, chegamos a 330.890 (+667%!) pessoas contaminadas e a 21.048 mortes (+665%!). O tempo mostrou a prevalência da insensatez.

A estranheza da quase ausência da principal questão do país na reunião, na qual a ênfase foi na ameaça, concretizada na noite do dia seguinte, 23 de abril, quando o Diário Oficial da União rodou com o decreto, forjado, da “demissão, a pedido” do diretor-geral da Polícia Federal, delegado Maurício Valeixo, no qual constava a assinatura (inverídica) do então ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, e a pregação para o “armamento do povo”, também concretizada no dia seguinte com o Decreto presidencial do aumento extraordinário da cota de bala para municiar o “exército” de apoiadores do presidente. Estranhamente, Bolsonaro disse ao menos duas vezes que não queria a reeleição - que todos sabem ser o mote de seu comportamento para defender a reabertura da economia e não reconhecer a gravidade da Covid-19.

Na noite de sexta-feira, 22 de maio, quem ligou a GloboNews, à tarde, sobressaltado com a reação intempestiva do chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, que reagiu, como que “por ouvir dizer”, a um despacho do ministro Celso de Mello indicando à Procuradoria Geral da República para se manifestar sobre pedidos de partidos de oposição para apreensão dos celulares do presidente Jair Bolsonaro e de seu filho, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-Rio de Janeiro). [se tivesse lido com atenção, o general veria que entendeu errado o despacho, sem qualquer decisão] já ficava estarrecido com os trechos liberados da reunião, o pior ainda estava por vir.

Uma troca no controle remoto para a CNN, mostrou, ao longo de um discurso com duração de cerca de 50 minutos, um presidente Jair Bolsonaro colérico, quase espumando e recorrendo a palavrões. Uma guinada de 180 graus em relação ao homem cordato que comandou na quinta-feira, 21 de maio, via zoom, uma reunião com os 27 governadores dos estados brasileiros e do Distrito Federal, ladeado pelos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP).

O que mudou em 30 dias ou em poucas horas não foram apenas a saída de Moro e Teich e o aumento de mais de 600% no número de contaminações e mortes registradas. Enquanto os números da pandemia colocavam o Brasil em 2º lugar entre os oficialmente atingidos pela Covid-19, a popularidade do presidente despencava. E certamente cairá mais após a divulgação do vídeo e dos últimos fatos.

Vale recordar que dia 20 de maio, terça-feira, a pesquisa XP/Ipespe apontara o pior índice de aprovação do presidente Jair Bolsonaro desde sua posse em janeiro de 2019. Se no dia 22 de abril, 26% dos ouvidos pela pesquisa consideravam o governo regular e 31% julgavam o governo entre bom e ótimo, com aprovação de 57%, contra reprovação de 42%, que achavam a gestão entre ruim e péssima (1º não repondeu), dia 20 os que consideravam o governo ruim e péssimo chegaram a 50%. A fatia dos que julgavam o governo regular encolheu de 26% para 23% e os que continuavam achando o governo bom e ótimo desceu de 31% para 25%. E 2% não souberam responder.

O que o general Augusto Heleno pode ter interpretado mal foi escancarado por Jair Messias Bolsonaro perante a claque de apoiadores quando retornou ao Palácio da Alvorada. Começou com as suas declarações habituais que despertam apoio imediato dos fanáticos correligionários. O primeiro e principal alvo foi tentar desacreditar o ex-ministro Sérgio Moro, frisando que o áudio não sustentava nenhuma das acusações de crimes do ex-juiz.

Mas Bolsonaro virou uma metralhadora giratória e sacou parte das armas e munições com as quais pretende armar seu eleitorado como forma de defender a liberdade dos cidadãos para voltarem a trabalhar, a despeito das restrições de governadores e prefeitos. Já disse aqui e volto a repetir: as pessoas vivem nos municípios, em casas ou apartamentos das ruas, vielas e morros dos bairros e cidades. Não nos estados ou na União. E é nas cidades de todos os cantos do país que os brasileiros estão contraindo ou sucumbindo à Covid-19.

À medida que o desvario de Bolsonaro se acentuava, surgia o estupor de seus seguidores fieis, que já não aplaudiam/apoiavam tanto. Vale lembrar que o incitamento à formação de uma brigada armada à margem das forças armadas e das forças legais dos estados e municípios teve um ensaio na rebelião dos policiais militares do Ceará, em fevereiro. Como o governador Camilo Santana é do PT, houve quem relevasse o gravíssimo apoio presidencial ao motim.

E Jair Messias Bolsonaro voltou a insistir no tema na manhã de sábado, à porta do Palácio da Alvorada. Assim como Fidel e Che Guevara montaram uma nova força militar para substituir a guarda corrupta de Fulgêncio Batista, ou coronel Hugo Chaves, na 3ª tentativa de levante militar, chegou ao poder - no qual se perpetuou até a morte cooptando chefes das forças armadas, a cujos parentes e amigos entregou empresas-chaves como a PDVSA, que seu vice, Nicolas Maduro terminou por afundar -, Bolsonaro quer mobilizar seu “exército” que parece mais fiel e aguerrido que o de João Pedro Stedile, do MST, tantas vezes invocado por Lula. Diga-se, aliás, que o pessoal do MST fez mais vigília na sua prisão na Polícia Federal, em Curitiba, que a militância do PT.

Apesar do distanciamento do tempo, Fidel e Che agiram em meio à mais grave crise da Guerra Fria (há quase 60 anos) e Chaves saiu de cena antes das cotações do petróleo despencarem e, aliadas à corrupção e incompetência de gestão, exaurirem as finanças do país com a maior reserva mundial de óleo.

Quem leu “O Alienista”, o genial conto de Machado de Assis, pode ter percebido em Jair Messias Bolsonaro traços quase acabados do Dr Simão Bacamarte, psiquiatra que queria internar toda a população de Itaguaí, município vizinho ao Rio de Janeiro, na direção de Angra dos Reis, tão querida de Bolsonaro. Mas encontrou vários internados com os mesmos distúrbios, por convicção ou bajular o chefe, como o ministro da ‘deseducassão’, Abraham Weintraub (ameaçado de ação no STF), o do Meio Ambiente, Ricardo Salles.

O mais espantoso foi a bajulação de Paulo Guedes, após o entrevero com o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, em torno do Pró-Brasil, que na tarde do dia 22 de abril, o chefe da Casa Civil, general Braga Neto, mencionou em entrevista à imprensa. Guedes relatou giro recente que tinha feito ao exterior e garantiu que o “Brasil estava sendo muito bem visto e vai surpreender o mundo em breve”, além de defender a privatização da “porra do Banco do Brasil”, desautorizada por Bolsonaro. Os fatos mostraram o contrário, houve fuga em massa de capitais do país em um mês e o dólar saltou de R$ 5,38 em 22 de abril para R$ 5,58 em 22 de maio (depois de ter roçado os R$ 6). E o Brasil surpreendeu mesmo. Mas como o maior foco da expansão da Covid-19.

Há uma semana, quem ouviu na CNN longa entrevista do ex-presidente Michel Temer, ficou agradavelmente surpreso [não no meu caso] com a elegância do linguajar do ex-presidente, um homem altamente escolado no trato da vida pública. A inabilidade com as palavras fez o ex-presidente Lula cometer uma barbaridade esta semana quando disse, em entrevista à Carta Capital “ainda bem” que o “monstro do novo coronavírus apareceu no mundo para alertar sobre a importância do Estado”. Como pegou mal à beça, Lula se desculpou no dia seguinte. Mas já era tarde, o estrago estava feito.

Quem resumiu a reunião de abril com elegante ironia foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso: “Que palavrório chulo na reunião ministerial! E que reações desencontradas. Que nível do debate: cabem as expressões sobre o STJ? (...) Pobre dos cidadãos brasileiros. A escolha foi da maioria. Se repetirá? Duvido”, conclui o ex-presidente.