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Depois do vendaval

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Entre palpites e reflexões sérias, no oceano em que navegam ansiedades e temores trazidos pela Covid 19, vamos abrindo espaço para o pós-pandemia, o que aprendemos ou desaprendemos, e como enfrentar os estragos que ela terá deixado. Se o pior dos prejuízos, o que vem cobrando milhares de vidas ceifadas - sinistro que não temos como reparar -, cuidemos então do que vai restar nos escombros. Quanto a esse resto, o que não falta são previsões, diferentes e aleatórios conselhos sobre o que fazer; e nisso certamente levam alguma vantagem os países que sofreram internamente efeitos de guerra, porque aprenderam na carne como se reorganizar em chãos encharcados de sangue. Não tivemos, felizmente, tal experiência, mas há muito a recomendar à população; e muito mais aos governantes que se atropelam e divergem no que dizem e no que instruem, quando são chamados a propor condutas máximas e mínimas frente a um mal feroz.

Haverá lições que não convém esquecer, ainda que epidemias tenham algo de fortuito, não avisam a hora em que pretendem chegar. Sem que falte aos povos sofredores, como os brasileiros, o velho consolo cristão inspirado em Santo Agostinho: Deus não permitiria um mal se dele não se pudesse tirar um bem; isto é, o aprendizado. No mesmo passo, as aulas dos antigos ginásios lembravam romanos do grande império - ad augusta per angusta – um consolo ante a certeza de que é sofrendo que as gentes se aperfeiçoam, bem como os poderosos que as governam.

Assim, como haveria o Brasil não ser chamado a cuidar de seus destinos depois que o vendaval passar? Quando começar a abrir o livro das lições que vão se escrevendo com dor e lágrimas talvez o país aprenda que cuidados com a saúde pública sempre devem preceder a prioridade da economia, quando ela se torna arrogante e insensível; porque esta não vive sem aquela, embora cuidariam bem se ambas caminhassem preocupadas em mútuas ajudas. Ficou claro: bastou o primeiro quadrimestre deste fatídico 2020 para que ruíssem as expectativas, ainda insepultas, da retomada do desenvolvimento, a produtividade morro abaixo, orçamentos lançados ao espaço e frustração na ampliação não apenas do emprego, como também da empregabilidade.

Não menos evidente terá ficado que temos diretrizes insuficientemente confiáveis na conduta das políticas sanitárias, se é chegada a hora de enfrentar e vencer males contagiosos; dos quais, aliás, são velhas conhecidas as pobres populações distantes nos agrestes, nos sertões e nas palafitas amazônicas. Bastaria lembrar nossa dolorosa vulnerabilidade, a fratura exposta na recente sucessão de ministros da saúde, desestimulados pelas receitas pessoais do presidente da República, que tem se revelado especialista em assuntos gerais no campo da saúde. A insegurança no entra-e-sai de ministros numa área que vive um dos maiores dramas da História brasileira tem deixado o mundo perplexo. E não é pra menos.

Esses quatro meses de internação domiciliar vão construindo extensa pauta de desafios. Um dos quais, para não citar muitos, é como lidar, a partir de agora, com o ensino em primeiro e segundo graus. A emergencial conexão digital nos lares, a que hoje estão condenados milhões de trabalhadores, crianças e adolescentes não pode servir de estímulo aos excessos de hibernação. Eles têm de conviver fora de casa, que não é nem pode ser permanente oficina ou escritório; não é adequada sala de aula para estudantes; muito menos cenário para afetos que as pessoas têm de trocar presencialmente. Se a internet nunca poderá morrer, será muito desagradável vê-la como produtora de reféns entediados.

Covid 19 fez com que batessem de frente os poderes constituídos do Brasil. Executivo desentendeu-se mais ainda com juízes da suprema corte; e estes, entre si, também rompem com os limites do direito de divergir; algumas vezes partem para o desaforo. Não menos escassas são boas relações do Palácio do Planalto com o Congresso, agravadas pelo temperamento presidencial, cuja imprevisibilidade tem sido robusta contribuição para dissidências, só momentaneamente aplainadas quando se abre o balcão de adesões do chamado Centrão. Os bons negócios não se vexaram no momento de calamidade; pelo contrário, exatamente o clima é que tem propiciado acertos.

Há em formação uma consciência coletiva a indicar que após o coronavírus muitas coisas vão mudar; aqui, como em qualquer parte do mundo. Mas dizer que nada será como antes talvez comporte certo exagero, como a comparação com a Peste Negra da Baixa Idade Média; esta sim rompeu com estruturas sociais e morais, mudou a paisagem do mundo, impôs melhor pensamento científico e terá aberto os primeiros caminhos para a revolução industrial. Agora não tanto. Porém, o que se transformar que seja para melhor. E lições sejam bem assimiladas, para alimentar a esperança de que a tragédia nunca mais se repetirá.