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Qual o modelo do FBI pra nossa PF?

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Com a pressão do presidente Jair Bolsonaro para ter acesso diário às investigações da Polícia Federal, incluindo as superintendências regionais, ação que levou à demissão do ex-chefe Maurício Valeixo – à revelia do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, que renunciou atirando – e a pronta substituição no comando da PF pelo ex-chefe da Agência Brasileira de Investigações (Abin), Alexandre Ramagem, a pergunta é: qual será o novo perfil da PF?

Nesta reclusão da Covid-19 tenho visto muitos filmes e a presença de chefes de polícia é parte do enredo. Podemos nos servir deles para imaginar o que o presidente Bolsonaro projeta para a atuação diária da PF. A primeira opção seria a que surge numa das cenas finais de “Casablanca”, quando o chefe da polícia do Marrocos ordena: ”prendam os suspeitos de sempre”.

Com a admiração da família Bolsonaro pelos Estados Unidos, imagino que queiram copiar o modelo do FBI (Federal Bureau of Investigation). Mas vale lembrar que o atual FBI surgiu efetivamente em 1932, quando a tragédia do sequestro e morte de um dos filhos de Charles Linbdergh, que fez o primeiro voo de travessia do Atlântico, levou o presidente Herbet Hoover a transformar o Bureau of Investigation (BOI, de 1908) em uma instituição federal, como poder para atuar nos 50 estados americanos.

Sob jurisdição da Procuradoria Geral, o BOI era mais ligado ao Tesouro (um dos principais crimes federais era a sonegação fiscal, que levou, na Lei Seca, à criação do grupo dos Intocáveis, chefiado por Elliot Ness, um agente do Tesouro). O FBI ganhou corpo de polícia de investigação e de serviço de inteligência interno (ou contra inteligência) quando foi transferido para a jurisdição do Departamento de Justiça.

J. Edgard Hoover, o mais longevo diretor do FBI (serviu de 1924 a 1932 no BOI e a partir daí até 1972 esteve à frente do FBI) acabou moldando a instituição em suas virtudes e defeitos. Foi dos primeiros a utilizar escutas telefônicas na época da Lei Seca, situação que o tornou dono dos mais graves segredos da América, misturando o submundo, negócios&finanças, políticos e as elites. Tinha tal autonomia que chegou a esconder operações de espionagem feitas desde a guerra fria, da Agência Central de Inteligência (CIA, na qual foi inspirada a nossa Abin), que tinha essa atribuição básica.

Edgar J. Hoover resistiu impávido a vários presidentes americanos Democratas ou Republicanos – de Coolidge, ainda no BOI, a Richard Nixon, passando por Hoover, Roosevelt, Truman, Eisenhower, John Kenedy, e Johnson). As escutas telefônicas tornaram-no um peão na política, nos negócios e no mundo do entretenimento dos EUA. Ao se aliar, no pós-guerra ao Comitê de Atividades Antiamericanas (HUAC, na sigla em inglês) e ao senador Joseph McCarthy, o arquiteto da segunda Ameaça Vermelha nos EUA, chegava a vetar a presença de atores, escritores e diretores nas produções de Hollywood. Seus poderes só começaram a ser podados em 1956, quando a Justiça americana passou a criar empecilhos para condenar pessoas por razões políticas, ativismo ou atividades que ele via como ameaça.

Não satisfeito, Hoover dobrou a aposta. Criou um esquema secreto paralelo de espionagem executado por agentes do FBI com golpes baixos, sabotagem, intimidação e perseguição de indivíduos e grupos escolhidos como alvo das atividades destrutivas do programa. Conhecido como Cointelpro, só foi descoberto em 1971, com a revelação de documentos secretos, no governo Nixon. Um dos alvos de embates de Hoover foi a família Kennedy. Robert F. Kennedy, Procurador Geral nos governos de seu irmão, John e de Lyndon Johnson, por seu empenho em combater a máfia (estranhamente poupada pelo diretor do FBI) entrou várias vezes em choque com Hoover, mas não conseguiu retirá-lo do cargo, que se tornou vitalício, até sua morte em maio de 1972.

Outro alvo foi o pastor Martin Luther King, líder de movimento negro, assassinado em 1968, em Memphis. Segundo investigações conduzidas, em 1975, pelo Church Committee, o Cointelpro nada descobriu de irregular em suas atividades, mas passou a fazer chantagens de seus furtivos encontros sexuais. Entre as várias cartas anônimas de ameaça a King, uma delas teria chegado a encorajá-lo a cometer suicídio para não ser desmoralizado.

Hoover foi substituído por Louis Patrick Gray III como diretor interino de 2 de maio de 1972 a 27 de abril de 1973. Nesse período, o FBI foi encarregado da investigação inicial dos roubos que provocaram o escândalo de Watergate, a invasão do escritório do Partido Democrata, em Washington, em junho de 1972, o que acabou levando à renúncia do Presidente Nixon, quando um processo de impeachment foi instalado no Congresso.

Um dos maiores denunciantes das ações clandestinas de Nixon e assessores ficou conhecido como o “Deep Throat” (Garganta Profunda) e era fonte secreta de um dos dois jornalistas do “Washington Post” que cobriram o caso. Duas garotas de programa que atendiam a presidência e foram incorporadas ao staff, inspiraram o batismo da fonte anônima com o nome do filme pornográfico dos anos 70. Só em 2005, em artigo a “Vanity Fair”, W. Mark Felt, o vice-diretor do FBI, revelou sua identidade secreta, mantida incógnita pelos jornalistas que recorreram ao direito da garantia do anonimato da fonte, prevista na emenda da liberdade de imprensa da Constituição americana. No Brasil, a garantia da liberdade de imprensa e de preservação das fontes estão garantidos pelo art. 5º, inciso XIV da Constituição de 1988.

Mais recentemente, em maio de 2017, o presidente Trump demitiu o diretor do FBI, James Comey, por desaprovar sua conduta nas investigações sobre o vazamento dos e-mails privados da então Secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, derrotada por Trump nas eleições de 2016, que poderiam divulgar assuntos de Estado expostos a espionagem internacional e fora do alcance da CIA e do FBI. Desde agosto de 2017, o FBI é chefiado por Christopher Wray.

Nossa PF, hoje com cerca de 14 mil agentes, teve muita ajuda das agências de inteligência americanas. Sobretudo nos 25 anos da Ditadura Militar. Já na redemocratização, quando a PF foi chefiada por Romeu Tuma (1986-82), muitos dos feitos do delegado federal, que aparecia no Jornal Nacional fazendo apreensões de drogas, eram operações iniciadas pela poderosa DEA (o departamento antidrogas do Tio Sam que não podia formalmente atuar no Brasil e delegava a tarefa à PF). Certa feita, no final dos anos 1990, quando carros e até a gasolina da estrutura da PF brasileira eram em parte doadas pela CIA, o segundo da Embaixada americana em Brasília, James Derham, chegou a declarar sem diplomacia, em maio de 1999: “O dinheiro é o nosso, as regras são nossas”.

A Polícia Federal é um órgão do Estado, não de governos. Não se sabe o modelo e a orientação a serem recomendados ao novo diretor geral, Alexandre Ramagem, policial federal que chefiava a equipe de segurança do candidato do PSL, Jair Messias Bolsonaro, mas não impediu a facada em Juiz de Fora-MG, nem às demais diretorias e superintendências. A do Rio de Janeiro, reduto da família Bolsonaro e amigos, é um dos alvos. Outro é o policial Igor Romário de Paula, que comanda a Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado, responsável pelas investigações sobre “fake news” e dos atos atentatórios à Constituição, ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal.

A determinação do ministro do STF Alexandre de Moraes, de manter os dois inquéritos com a mesma equipe da PF, pode atingir os filhos de Bolsonaro, sobretudo o deputado Eduardo Bolsonaro (SP). Escrivão da PF e um dos líderes no Brasil da Conferência Política da Ação Conservadora (sigla CPAC em inglês), que remete aos ideais da HUAC, o deputado diz que a PF está “infestada” de gente do PT admitida nos governos Lula e Dilma e quer mudanças profundas. Este deve ser um dos embates desta semana.