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Pela Federação

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Já na pauta dos consensos que o indesejável vírus que assola o mundo e prospera no Brasil haverá de ensejar mudanças na organização político-social do país, valerá lembrar, mesmo para mera reflexão, uma das heranças preponderantes: o visível enfraquecimento de nossa Federação. Pois essa epidemia tem mostrado, além do rastro de mortes e incalculáveis prejuízos para a economia, que vão resultando comprometidas as relações do pacto federativo, já acumuladas de distorções e deficiências, antes mesmo que aqui desembarcasse o flagelo. Com o corona estão se abalando as relações entre os poderes central e estaduais, fato agravado pela adoção de medidas regionais, dificultando um programa comum de saúde para a defesa da sociedade ante o mal contagioso.

Evidência maior não se poderia reclamar, quando se assistiu, em recente espetáculo televisado, ao embate do presidente da República com alguns governadores. Ficou claro que o Brasil passou a dar trânsito a isoladas medidas para o enfrentamento da doença; como se fosse possível a cada qual das unidades tratar com exclusividade de sua própria enfermidade; como se o inimigo, mais feroz em São Paulo e Rio de Janeiro, mas presente em qualquer outro estado, devesse ser combatido apenas com panaceias próprias e isoladas; ou se cada um deles tivesse soluções exclusivas.

Ora, se no resto do mundo exausto e aflito o coronavírus passa incólume por qualquer fronteira, internacionalizando-se sem dificuldades, por que isso haveria de ser diferente entre os estados brasileiros? Impossível ignorar, por exemplo, que São Paulo, da mesma forma como surpreendentemente importou, pode facilmente exportar a epidemia para os vizinhos. As unidades, sob parâmetros federativos, separam-se, administrativamente autônomas, mas suas divisas estão longe de serem barreiras eficientes para conter a transmissão do mal. Idêntica limitação há que se observar em relação aos limites dos municípios. Na verdade, somos apenas um imenso campo aberto em todos os flancos, sem muros e sem trincheiras capazes de separar, na adversidade sanitária, os corpos que compõem a instituição federal. Mostram-no as estatísticas sinistras que o ministro Mandetta atualiza diariamente, antes de fechar o expediente de más notícias.

O Brasil tornou-se ambulatório de vítimas comuns. Por isso mesmo não pode continuar sendo tratado como organismo estanque, onde que cada estado cuide de seus próprios enterros, diria Quinca Berro D’Água, no romance de Jorge Amado. Inaceitável que o presidente e os governadores não sintam isso.

Frente a tal constatação, mesmo sendo impossível prever a extensão final da tragédia, involuntariamente ela adverte para a premência de se aprofundar o espírito federativo; esse espírito de há muito reclamado em razão de outras questões essenciais, entre as quais a discrepância das riquezas de um país soberbamente desigual. E mostra-se agora, com funesta experiência, que também no cenário das grandes doenças o Brasil precisa ser visto e tratado como uma Federação, não simples costura de peças isoladas; não apenas o conjunto de entidades confederadas, compartimentos de um mesmo mapa geográfico.

Para a preservação de tal propósito, a primeira entre as premissas é que o governo central e os estados primam pela harmonia, sem que tenham de capitular de sua autonomia. Mas o primeiro passo de boa vontade há de ser dos governadores, em particular os inamistosos e os que já não conseguem dissimular o desejo de se cacifarem para eleições futuras. Sem o fórceps do Supremo Tribunal, devem abandonar essa perigosa separação, adotando, no caso presente, a mesma responsabilidade federativa com que costumam ir a Brasília reclamar verbas. Sem isso a unidade nacional sempre estará ofendida, com ou sem vírus.