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Charada à direita

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Compreender a intimidade de alguns problemas políticos da atualidade brasileira não está entre as questões mais simples. Diga-se, de passagem, que nada há de novo em tal afirmação, porque já a antecedia a percepção de inúmeros analistas. Na verdade são questões que se revelam sinuosas, favorecendo dúbias interpretações e não poucas incertezas, principalmente quando ocorre de o jogo do poder apresentar-se em forma de charada. É o que se observa, por exemplo, a partir da constatação do desejo cada vez mais latente do presidente Bolsonaro de governar sem maiores restrições e, se possível, acima de incômodos dos contrários. Então, sob a forma de enigma, tomemos o raciocínio imediato sobre a realidade da composição do Congresso Nacional, onde é conservadora a maioria absoluta dos seus membros. A Câmara dos Deputados e o Senado, as duas casas que o compõem, são dirigidos pelo DEM (ex-PFL), originalmente a ARENA (partido de direita no regime militar). Fácil concluir, portanto, sem embargo de restrições nas relações com o presidente, que se julga manietado, o que está em questão é que a luta pelo poder ocorre dentro do campo conservador; apenas dentro dos limites de seus interesses. Sim, porque sem ter conseguido superar totalmente o golpe que sofreu com as urnas de 2018, a esquerda ainda permanece fora do campo onde se trava o jogo imediato. Suas lideranças pouco têm conseguido além de pretexto para o discurso na disputa cultural de militantes de formação direitista. Conclusão inevitável é que quem está sob ataque, agora, é o baixo clero do Legislativo, que foi o espaço do deputado Jair Bolsonaro nos sete mandatos que exerceu antes de tornar realidade o projeto presidencial. Caindo no Executivo, as trincheiras mudaram de posição.

Diante de tal peculiaridade, os rumos da batalha intestina que travam os seguimentos direitistas ainda não autorizam previsões consistentes sobre o que está por acontecer.

As lideranças militares apoiam o projeto Bolsonaro desde a última campanha eleitoral. Sejam membros das forças armadas ou das forças de segurança públicas estaduais, elas nunca deixaram dúvidas quanto à sua dedicação. Mas seriam elas, sob a bandeira dessa lealdade, suficientemente fortes e prestigiosas para empresas mais arrojadas ou um avanço sobre as instituições, mesmo ao sabor do pretexto da governabilidade? Outra fortaleza da direita são as elites econômicas do país. Diferentemente do comportamento que tiveram em 64, estariam dispostas a dar seu aval a qualquer aventura golpista?

O presidente deve saber que uma contestação mais vigorosa sobre a autonomia do Legislativo sempre comporta algum risco, mesmo quando se contar, nesse particular, com a simpatia simplista da parcela da opinião pública que vê inutilidade nos mandatos parlamentares. Na década de 60 o presidente Jânio Quadros escorregou e caiu, quando pretendeu levar o povo às ruas para bradar contra o “clube de ociosos”, como gostava de definir o Congresso. O foco do movimento em curso também embute uma reprimenda contra o Congresso Nacional, a partir dos presidentes Rodrigo Maia (Câmara) e Davi Alcolumbre (Senado).

Se nesse quadro faltasse uma curiosidade, bastaria lembrar que muitos parlamentares bolsonaristas apoiam um anunciado ato político contra o poder Legislativo, do qual são parte e para o qual foram eleitos recentemente...

São reflexões que surgem a partir da iniciativa do presidente da República de incentivar as manifestações de rua, em todo o Brasil, marcadas para domingo, 15 de março; o que acontecerá se a marcha do coronavírus não desaconselhar aglomerações desse tipo, perfeitas condutoras de contágio.

O tempo quaresmal recém-começado não consegue dissimular as dificuldades institucionais em curso. Oxalá passem com a Páscoa, e melhores dias surjam no cenário político.