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Reféns da perplexidade

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Fato é que o segundo semestre avança furioso sobre o estoque de perplexidades a que o país está condenado, sem que saiba exatamente quando delas poderá se livrar, mesmo parcialmente. Disso resulta um clima de sobressaltos e de dúvidas sobre o que o brasileiro terá de ouvir na manhã seguinte. É, por exemplo, a sensação de quem vai ao telejornal e vê o comunicado da Vale, que passou agora a monitorar suas represas, o que há muito devia ser feito, evitando o crime de Brumadinho, que ela insiste em definir como um acidente, que custou a vida de duas centenas de pessoas. E ninguém preso. Incrível.

Num salto sobre o mapa, chega-se a Altamira, onde se assistiu, com pavoroso banho de sangue, à repetição de um descuido do sistema penitenciário, que espera a repetição de massacres para saber que gangues do crime organizado não podem viver sob o mesmo teto, porque não sabem conviver. Para separá-las nem dispensável esperar os choques mortais. Não é menor o espanto de quem vai às redes sociais, onde não falta quem vê apenas uma excelente solução aritmética na chacina paraense: menos seis dezenas de criminosos eliminados. Bandido bom é sempre bandido morto? As sentenças prolatadas contra esses agentes do crime, conhecida sua periculosidade aliada à fiação a falanges sanguinárias já deviam definir a separação, sem permitir que a medida preventiva fique ao sabor de um sistema prisional que prima por muitas deficiências.

Se o voo dos perplexos faz parada em Brasília, chega aos ouvidos de uma população que nem pode dar conta de seus espantos, o relatório sobre o volume de obras mal iniciadas e abandonadas - 7.200 -, depois de constituírem um monumento ao desperdício do dinheiro dos contribuintes. O horror é ainda maior, porque não se fala em convocar os responsáveis pelo desleixo, como se o que praticaram ficou nos limites de mera traquinagem.

Espantemo-nos. Nossos tribunais, guardiães da Justiça, mandam parricidas deixarem a cela no segundo domingo de agosto para visita sentimental ao túmulo do pai que mataram. Há antecedentes dessa estranha inversão de amor filial, mas nem por isso a repetida liberalidade deixa de indignar por conter um certo conteúdo de hipocrisia.

Liberalidades, portanto, já não surpreendem excessivamente. Outra, que é desta semana, não seria capaz de surpreender, até porque guarda identidade com um mau costume político. É a ânsia de muitos deputados em cobrar e receber logo o dinheiro das emendas prometidas em troca do apoio à reforma da Previdência; prêmio a que fazem jus por não terem mutilado totalmente, mas apenas parcialmente, o texto da matéria proposto pelo Executivo.

Num passo à frente, graças a singular simbiose de bizarrice e espanto, o segundo semestre também avança por iniciativa do presidente Jair Bolsonaro, que, soprando cinzas e brasas do passado que adormecia, trouxe à trempe dois capítulos sepultados no golpe de 64: contestou a responsabilidade do Estado na morte de um militante de esquerda, Fernando Santa Cruz, mexendo com sentimentos do presidente da OAB, e exaltou, mais uma vez, o coronel Brilhante Ustra, que o chefe do governo tem na conta de herói nacional, mesmo tendo sido o primeiro oficial de 64 a ser condenado como torturador em decisão judicial de 2008.

O mais grave na caminhada de um país de perplexos é o temor de perdermos a capacidade de estranhar essas coisas que nos rondam e nos ameaçam; como se uma anestesia geral se abatesse sobre a nação. O presidente, antes de todos, teria o dever de nos poupar desse triste destino.