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'Vai que é tua, Posto Ipiranga'

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 A frase, formulada pelo filósofo grego Ésquilo, “Na guerra, a verdade é a primeira vítima” e que já foi repaginada, conforme as circunstâncias exigiam, pelo primeiro-ministro britânico Winston Churchill e pelo senador americano Hiram Johnson, se aplica também às provocações do futebol e das campanhas políticas. Em visita esta semana a Buenos Aires, na ânsia de ajudar à reeleição do presidente Maurício Macri, o presidente Jair Bolsonaro lançou a ideia de uma moeda comum para o Mercosul, o pesoreal.

Tiradas semelhantes na campanha eleitoral brasileira o então deputado-capitão cansou de lançar. Quando gerava ruídos no mercado financeiro e nos meios econômicos, tratava de se escusar, dizendo que quem entendia de economia era o “Posto Ipiranga”, como então se referia ao economista Paulo Guedes, que viria a nomear como ministro da Economia, com poderes de um super czar que englobaria as pastas da Fazenda, Planejamento e Gestão, Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e ainda os ministérios do Trabalho e Previdência Social.

Dita na quinta-feira, 6 de junho, a frase de Bolsonaro, enquanto entregava a Macri uma camisa da seleção brasileira com o número 10, imortalizado por Pelé, numa provocação clara com o 10 da azul celeste, Diego Maradona, foi frontalmente desmentida dos dois lados da fronteira.

No Brasil, o Banco Central informou que não havia qualquer estudo sobre a integração monetária (de resto impossível a curto e médio prazo). Em Buenos Aires, o ministro da Fazenda, Nicolás Dujovne, também esvaziou a declaração, afirmando: “É um projeto que vimos conversando com Paulo Guedes. Por ora, é uma ideia que compartilhamos”, segundo o jornal especializado em economia e finanças “Ámbito Financiero”:

Para quem se lembra de que às vésperas da posse, ao ser indagado por uma jornalista argentina qual o futuro do Mercosul Guedes reagiu grosseiramente, dizendo que o bloco econômico não era prioridade, parece uma contradição, de um lado, e um avanço, de outro.

Na verdade, a criação de uma moeda comum para os atuais membros fixos do Mercosul – Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai – não passa de uma miragem. Ou de um carro posto adiante dos bois. Há tantas medidas burocráticas, alfandegárias, de unificação de normas (da energia, que passa pela remoção da tomada de três pinos no Brasil, às telecomunicações) e até currículos universitários para justificar uma integração econômica de fato que justifique o uso de moeda comum, que mais que uma “fake news”, pode-se classificar a declaração como um factoide, como bem traduzia há mais de uma década, o ex-prefeito do Rio, Cesar Maia para esvaziar uma notícia plantada.

O efeito eleitoral é difícil de medir. A eleição será em 27 de outubro, quase daqui a cinco meses. As primárias que definem as chapas disputantes à final, serão em 11 de agosto. E não há apenas no ar uma disputa entre a reeleição de Maurício Macri e a volta de Cristina Kirchner, que embora popular, diante das ações que correm contra ela na Justiça deixou a cabeça de chapa com o Alberto Fernández, passando à condição de vice.

Corre por fora, a atual governadora da província de Buenos Aires, Maria Eugênia Vida, que fará 46 anos às vésperas do pleito. Ex-ministra da área social de Macri, antes de vencer o candidato apoiado por CK nas eleições provinciais de 2015. Ela é a candidata querida dos setores financeiros. Muito se especula em Buenos Aires da atual situação liberal repetir a tática de KC e criar a chamada “Opção V”, já desmentida por Macri. O presidente deixaria a disputa em favor de Vidal, que venceria no 2º turno em várias simulações de pesquisa.

O fato mais celebrado do lado da Argentina, pelo “Ámbito Financiero” foi o comunicado conjunto de que está prestes um acordo entre o Mercosul e a União Europeia, principal destino das exportações de produtos agrícolas do bloco. O índice Merval, que mede a evolução da Bolsa de Valores de Buenos Aires, subiu 5% na semana, no melhor desempenho desde abril e o dólar ficou estável. Para um país que está mais sob a gestão de outra Cristina, a Lagarde, diretora geral do Fundo Monetária Internacional, foi uma semana auspiciosa.

Mas voltemos ao terreno da realidade. A União Europeia, criada como Mercado Comum Europeu, em 1957, por seis Estados fundadores, se fortaleceu em 1988, quando o então MCE acertou o ingresso de Portugal, Espanha, Reino Unido, Irlanda e Grécia. O Tratado de Maastrich, definiu, a partir de 1993, já após a queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética, regras amplas e rígidas de convergência econômico e política para a ampliação das fronteiras do bloco, hoje com 28 países (entraram países nórdicos, com exceção da Noruega, e antigos estados do Leste Europeu). Estão com pedidos de ingresso em exame a Turquia, Montenegro e a Sérvia.

Mas a moeda única, o euro, só foi adotada, até agora, por 19 dos 28 membros. Além do Reino Unido, que sempre teve um pé atrás para a EU (e agora anda às voltas com o Brexit) o ingresso no euro depende de convergência de dados macroeconômicos, como inflação até 3% e dívida pública de até 60% do PIB.

Se adotassem o mesmo critério, não haveria base no Mercosul. Mesmo no Brasil, com o IPCA em queda, a inflação anual está acima de 4% e deve cair para 3,5% em julho, enquanto é de 46% na Argentina. E a dívida pública brasileira chega a 78% do PIB. Por ora, o pesoreal é apenas um factoide.

Isso me lembra o congelamento dos ativos financeiros no Plano Collor. A cada fala da ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, o Banco Central tinha de adaptar os sistemas de controle dos títulos negociados no mercado às novas instruções, sem nexo com a realidade. Por isso, a reabertura dos negócios levou quase três semanas, para angústia dos depositantes e investidores.

A cada fala de Bolsonaro, Guedes e o Banco Central têm de dar tratos à bola. Por sinal, às vésperas da Copa América, que sempre acirra as rivalidades entre Brasil, Argentina e Uruguai, não é exagero afirmar que seria mais fácil formar uma seleção entre os quatro países do que integrar a economia de todos eles. O Brasil tem 210 milhões de habitantes, quase cinco vezes os 44 milhões da Argentina (menor que os 45 milhões de São Paulo). Seu PIB equivale a 25% do PIB brasileiro (comparável ao de Minas Gerais).

A rigor, os argentinos, que conheceram a riqueza e o desenvolvimento quase meio século antes de o Brasil dar um salto a partir do governo JK, só nos ganham na renda per capita e na qualidade de vida e IDH. Mas, na medição em dólar eles estão em queda livre. Daí a ajuda do pesoreal, citado por Bolsonaro e que o “Posto Ipiranga” teria que dar tratos à bola para viabilizar... Lembro apenas que nas operações de salvamento em mar revolto, o afogado tende a levar o salvador ao fundo. Motivo em que, não raro, os salva-vidas apagam o socorrido para evitar mais vítimas.

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