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A crise da nação vizinha é contagiosa?

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Ainda estamos a salvo. Nossa porta de defesa contra o vírus argentino está bem trancada pelo elevado nível das reservas cambiais do Brasil. Temos mais de 370 bilhões de dólares no cofre e um saldo corrente do setor externo bem confortável. Em crises cambiais, é crucial ter amplas reservas e um balanço equilibrado entre exportações e importações. A Argentina não preenche hoje qualquer das duas condições. 

Desde os anos 1980, quando nosso Plano Cruzado (1986) reproduziu as mesmas terríveis bobagens de política econômica que haviam sido anunciadas no Plan Austral (1985) no país vizinho, agora as nuvens escuras do “Eu serei você amanhã!” voltam a povoar nosso imaginário. Mas é bom lembrar que a cartilha do obscurantismo econômico na América Latina só foi adotada por equipes despreparadas para enfrentar o desafio. Houve também exemplos edificantes de gestão econômica liberal (e sem extremismos estúpidos) como a do economista Ernan Buchi à frente da economia chilena. Com a sólida liderança de Buchi que, por sinal, não foi da escola de Chicago, o Chile conseguiu evitar a armadilha do elevado endividamento externo e da penúria de receitas cambiais que tanto caracterizou a miséria da região naquela década perdida. O Brasil, nessa altura, era uma insistente fábrica de péssimos planos econômicos, baseados em congelamentos de preços, câmbio e poupanças, bastando recordar os Planos Verão e Collor, na sequência do desastroso Plano Cruzado. 

A lembrança dessa era de pacotes econômicos é importante para entendermos que propostas estúpidas têm sempre mais chance de adoção, num processo de contaminação coletiva entre países, do que a imitação de bons exemplos, até porque a ilusão dos anúncios de sucesso imediato é uma receita tentadora na relação entre governantes fracos e governados desesperados. Um congelamento de preços, mesmo parcial, como anunciado, na semana passada, pelo neoliberal presidente Macri, na Argentina, almeja pacificar os argentinos emparedados na corrida entre preços em alta e rendas e empregos em queda. Mas o resultado inevitável do controle de preços na Argentina de Macri será o mesmo desastre de experiências anteriores, pela própria lógica que impõe o rompimento de uma barragem porosa. 

Continuamos num rumo diferente no Brasil. Não se contempla aqui o controle ostensivo dos preços. O desabastecimento da população não é um risco, como na vizinha Argentina. Não nos iludamos, porém, com a capacidade da estupidez humana em preencher os espaços deixados pela ausência de planos inteligentes e bem orientados. O contágio de lá para cá pode penetrar por baixo de nossas defesas convencionais. Talvez não penetre pelo descontrole direto do câmbio, como ocorre hoje na depenada nação-irmã, mas pode se esgueirar pela inflação e pelo custo absurdo da rolagem da dívida pública brasileira. O vetor da contaminação, no nosso caso, é o tamanho desmesurado do déficit público. O novo governo apostou todas as suas fichas numa polêmica reforma do sistema previdenciário, que economizará (se tudo andar bem) cerca de 1,1 trilhão de reais em dez anos, dos quais apenas 160 bilhões aparecerão nas contas fiscais do presidente Bolsonaro. Temos séria desconfiança, para não dizer certeza, de que o tempo útil do atual mandato presidencial ficará bem aquém dos resultados pretendidos. A insidiosa dança dos mercados em torno do grau de confiança no taco do primeiro ministro da economia brasileira pode ser a gota que entornará o caldo do atual equilíbrio instável em que o país se encontra: PIB muito fraco com inflação baixa; investimento baixo, embora com juros menos agressivos. Guedes é o primeiro a apontar, em entrevistas, que andamos na corda bamba. 

O equilíbrio instável em que nos encontramos colabora para manter uma das mais elevadas taxas de desemprego jamais vistas e com várias economias estaduais depauperadas pelo largo comprometimento de suas receitas públicas. Tudo conspira contra o tempo de que o governo federal ainda dispõe para fechar o ciclo de aprovação de reformas – reformas no plural – no Congresso Nacional. Mas os parlamentares, em vasta maioria, não se convenceram sobre o papel crucial do Congresso na virada da economia. O tempo restante, no entanto, está quase esgotado. E a assombração do vizinho arruinado é, cada vez mais, um prenúncio de sofrimentos repetitivos.

(*) Paulo Rabello de Castro é autor do Mito do Governo Grátis. Em 1986, foi o primeiro a prever e a escrever sobre o fracasso inevitável do Plano Cruzado.

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paulo | política