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Dúvidas bem armadas

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Sem tentar ser impertinente, e mesmo reconhecendo que é necessário grande esforço para enfrentar uma violência que não para de crescer, confesso que ainda não me curvei à expectativa de bons resultados na liberação de armas de fogo, consoante recente decreto do presidente da República. Leio e releio textos das mais diversas tendências, e os temores persistem. Talvez a prudência recomende aguardar outros resultados dessa liberalidade.

Mas, já de imediato, preocupa a primeira, ainda que não seja exatamente prenúncio de sinistrose: é o fantástico aumento dos negócios e das ações da indústria dessas armas. Em pregões de Bolsa ocorreu valorização de centenas de pontos, coisa impensável para nossos grãos. Porque é duvidoso achar que parte dessa farta produção não acabará terminando com os bandidos, exatamente em mãos em que não podem cair. É uma hipótese pessimista, mas não de todo impossível, conhecendo-se a variedade dos expedientes do crime organizado. Portanto, as fábricas e lojas também se cuidem.

Não faltaram vozes a sugerir ao presidente que antecedesse seu decreto com uma consulta popular. Porque, se aceita a liberação por expressiva maioria, ficaria ele com o respaldo da aprovação, teria como dividir os desdobramentos e consequências, fossem a seu favor ou para condená-lo. Mas, pelo que se viu, o governo preferiu escudar-se no referendo de 2005, sobre o Estatuto do Desarmamento, quando expressiva cota do eleitorado pronunciou-se contra a proibição da fabricação de armas; uma decisão que não deve ser interpretada como consequente e natural aceitação de armas em residências e locais de trabalho. Uma produção, seja lá do que for, não é automática abertura para o consumo.

Mas tudo isso tem contestações poderosas, quase sempre partindo do direito de defesa pessoal, que, na verdade, é o argumento mais consistente, mesmo em desacordo com outros argumentos racionais, o primeiro dos quais é a certeza absoluta de que o que realmente põe cobro à violência não é armar o cidadão, mas desarmar o bandido.

Questão aritmética

Há um contraste facilmente constatado: a violência e o crime mais prosperam exatamente onde a população mais se municia. É suficientemente demonstrado que a disseminação de armamentos letais, mesmo em mãos responsáveis, amplia tensões e enseja precipitações, como costumeiramente se vê em momentâneos incidentes entre vizinhos e no trânsito. Não raro, sacase do revólver por uma banalidade.

Se a arma, ainda na linha da contra-argumentação, descansa no armário, desengatilhado para que se evitem imprevistos domésticos, o que pode ele ante a surpresa do invasor? Cria-se um cenário pânico, talvez até o pitoresco direito de que o assaltante quererá se valer, pois, em sua própria defesa (sic) vê-se obrigado a atirar, quando apenas pretendia levar valores materiais…

Penso, ainda, nas vítimas da violência que transitam pelas ruas, mas no momento de se defenderem nada podem porque a arma ficou em casa ou no escritório. Essa dúvida faz coro com outra, ainda não suficientemente considerada: fazendeiros e sitiantes, trabalhando ou residindo no interior ermo, têm direito à defesa pessoal e do patrimônio, mas é preciso reconhecer que a discutida liberação poderá servir de pretexto para ajustes de terras e divisas, muito comuns, não diferentemente hoje dos velhos embates das roças distantes. Há, particularmente, um temor em relação que venham do campo, até porque não são raros os conflitos de interesses que acabam em morte.

Tenhamos paciência. Torçamos para os resultados não aprofundem os temores. Mas que eles há, não temos como esconder.

“O povo decidiu por comprar armas e munições, e nós não podemos negar o que o povo quer neste momento”

(Presidente Jair Bolsonaro)