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Os regressistas chegaram

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Desde 1º de janeiro um novo arranjo político está governando o Brasil. Seus pilares são: 1) o clã Bolsonaro, do “partido sem partido”, que detém mandatos há muitas legislaturas; 2) os militares “linha-dura”, como o vice Mourão e diversos ministros, defensores da ditadura civil-militar de 64; 3) os fundamentalistas das igrejas neopentecostais, em permanente guerra cultural contra os “desvios do comunoateísmo”; e 4) os ultraneoliberais, adeptos do Estado mínimo e do privatismo máximo, sob o comando de Paulo Guedes.

Os discursos de Bolsonaro, na posse, nos regrediram à Guerra Fria: em cena as “ideologias nefastas”, a “ameaça socialista”, o “perigo vermelho”, os “direitos humanos que protegem bandidos”, a patriotada de “dar o sangue” contra o comunismo... Por outro lado, nenhuma frase, mínima que fosse, sobre a terrível desigualdade social brasileira. Nenhuma crítica, ainda que sutil, sobre o nosso histórico patrimonialismo, o patriarcalismo, a concentração de riqueza e renda.

O presidente da República não tem visão estratégica do nosso processo de desenvolvimento. É movido a clichês, aos solavancos de frases que agradam à parcela ultraconservadora da sociedade, ao núcleo duro que lhe deu a vitória nas urnas. Essa seiva amarga não alimenta por muito tempo um governo.

Já estão chegando os ataques ao meio ambiente, inclusive com certo desprezo ao Acordo de Paris e o aval para mais desmatamento. A agressão à educação pública e democrática se dá com os projetos “Escola sem Partido”, biombo legislativo para um ensino dogmático, sob a égide de “educastradores” – e não de educadores. Os direitos humanos só valerão para os “humanos direitos”, fiéis à cartilha da “Família, Tradição e Propriedade”. Nossa política industrial ficará subordinada aos interesses do grande capital transnacional. E as relações com outros países serão pautadas por conceitos “trumpianos”, o que pode, comercialmente, nos custar caro.

Temos, em pleno século XXI, um ministro do meio ambiente que é contra a ecologia, uma ministra da cidadania que não a aceita para todos, um chanceler que só chancelará como amigos os países que tiverem governos conservadores, um superministro da economia que rejeita o papel regulador do Estado. A política de segurança está orientada para o confronto, mesmo ceifando vidas inocentes, e a política de saúde a serviço dos grupos privados. Os índios, para os novos donos do poder, precisam chegar ao padrão civilizatório dos brancos. Suas tradições e terras estarão a serviço do “progresso”, assim como as áreas quilombolas, cujos líderes são, para o presidente eleito, “preguiçosos”.

Bolsonaro e seu grupo foram beneficiários da descrença na política. Vendeu-se a imagem do líder voluntarista e messiânico, até com traços de “martírio”. A estúpida facada o livrou de debates, e ele e sua esposa reconheceram sua eficácia eleitoral ao mencioná-la na posse.

O voto dado na extrema direita foi de protesto e vingança, orientado pelo medo, pela exaustão em relação à violência cotidiana e à corrupção. A esquerda como um todo foi identificada com o sistema e o PT passou a ser visto como o inventor da roubalheira no Brasil.

Não se detém, porém, o giro da roda da História! A onda que elevou pode ser a mesma que afoga. As contradições no interior do bloco governista se avolumarão, como se vê na chamada “bancada de sustentação” de Bolsonaro no Congresso. Práticas fisiológicas revelarão que não há novidade sob o sol. A resistência democrática mostrará sua força, em grande unidade contra os retrocessos, a retirada de direitos, a truculência, o obscurantismo cultural. Mais do que o Havaí ou o Haiti, a Hungria é aqui... Há saídas e há braços, ainda que momentaneamente fragilizados pela larga derrota. Coloquemo-nos de pé, de mãos dadas. Afinal, somos ao menos 47 milhões.

*Chico Alencar é professor de História, escritor e deputado federal (PSOL/RJ) até 31/1/19