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Vexames e grosserias

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O Brasil vem se tornando um país ridículo aos olhos do mundo e acaba de produzir mais uma situação bizarra com o convite, seguido de desconvite, aos presidentes de Cuba e da Venezuela para a posse de Jair Bolsonaro, episódio que culminou na demissão do responsável pelo cerimonial do evento, Paulo Uchoa. Que o presidente eleito desconheça regras elementares da diplomacia, vá lá. Já com seu futuro chanceler, Ernesto Araújo, não pode haver indulgência. Ele até faltou com a verdade (homenageio a diplomacia com o eufemismo) ao dizer, inicialmente, que os dois governantes não haviam sido convidados, sendo desmentido pelo chanceler venezuelano com a publicação do convite recebido. Muito feio.

O Itamaraty emitiu ontem um comunicado colocando os pingos nos is: os presidentes de Cuba e da Venezuela foram mesmo convidados mas, por recomendação da equipe de Bolsonaro, foram desconvidados. A nota não diz, mas tal grosseria nunca foi exigida do Itamaraty, em tempo algum. A praxe é convidar os chefes de governo ou de Estado de todos as “nações amigas”, aquelas com os quais o Brasil mantém relacionamento, independentemente da orientação ideológica de seus governos. Fosse assim, por que não excluir a China?

O futuro chanceler, embora sabendo que os convites haviam sido expedidos, postou o seguinte tuíte: “Em respeito ao povo venezuelano, não convidamos Nicolás Maduro para a posse do PR Bolsonaro. Não há lugar para Maduro numa celebração da democracia e do triunfo da vontade popular brasileira. Todos os países do mundo devem deixar de apoiá-lo e unir-se para libertar a Venezuela”. Não precisava ter passado pelo vexame de ser duplamente desmentido.

O afastamento de Uchoa do comando do cerimonial teve como explicação inicial a picuinha ideológica, marca do bolsonarismo. O motivo seria o fato de ele ter “curtido” publicações críticas ao futuro governo em redes sociais. Ao longo do final de semana a verdade foi aparecendo. Uchoa recebeu mesmo de Araújo a recomendação para não convidar os presidentes dos dois países pelos quais tem ojeriza e tentou argumentar que o procedimento padrão, baseado em decreto interno e nos códigos internacionais da diplomacia, é enviar convites para os governantes de todos os países com os quais o Brasil tenha relacionamento. Não conseguindo convencê-lo, procurou diretamente o presidente eleito, com quem vinha tendo boa relação, ao ponto de ter sido convidado para chefiar o cerimonial do Planalto depois da posse. Bolsonaro concordou e os convites foram expedidos. Ao saber que o subordinado tratara do assunto diretamente com Bolsonaro, sentindo-se traído, Araújo pediu seu afastamento da função e determinou o “desconvite”.

Os ritos fundamentais da diplomacia seguem preceitos de uma convenção internacional que busca contribuir para o convívio pacífico e as relações amistosas entre as nações. Entre eles, o de se convidar para a posse de um novo governante representantes dos países com os quais seu país tenha relações diplomáticas. Este preceito nunca deixou de ser observado, mesmo durante a Guerra Fria, pelos países dos hemisférios antagônicos. As regras do cerimonial brasileiro foram estabelecidas por um decreto de Médici, em plena ditadura, que não contém qualquer restrição de natureza ideológica. Mas o Brasil de Bolsonaro está pondo de lado as tradições de uma diplomacia internacionalmente respeitada, para atender às picuinhas do futuro chanceler, neste caso mais xiita que o próprio presidente eleito.

Encherá barriga?

Bolsonaro voltou a vociferar ontem contra a ideologia de gênero. Todo dia uma pauta comportamental é lançada ao vento. Quando o governo começar, seu eleitor vai se contentar com a guerra cultural que não enche barriga, ou vai cobrar medidas contra o desemprego persistente, renda em queda, violência em alta e serviços públicos precários? Por ora, a discurseira diverte. Depois, veremos até quando ela surtirá efeito.