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AI-5, uma noite de dez anos

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“Ontem foi o dia dos cegos”, informou há 50 anos este Jornal do Brasil, no canto superior direito da primeira página. Era o editor-chefe Alberto Dines driblando a censura para informar que, na véspera, o país mergulhara nas trevas, com a edição do Ato Institucional número 5. A hora pede que falemos do AI-5: muita gente continua cega, com saudade da ditadura. A história não se repete da mesma forma, mas há sombras sobre a democracia.

“Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável”, dizia a informação meteorológica. O dia 14 amanheceu azul mas começava a noite que duraria mais de dez anos, com censura, cassações, prisões arbitrárias, tortura, assassinato e desaparecimento de opositores do regime.

O Congresso foi fechado e só voltaria a se reunir quase um ano depois, para a escolha indireta do novo ditador-presidente, o torcionário Emílio Médici. As prisões alcançaram até figuras que haviam apoiado o golpe de 1964, como o ex-presidente Juscelino Kubitschek e o ex-governador Carlos Lacerda. Onze deputados foram logo cassados. Em 1969, 333 políticos perderam os mandatos ou tiveram os direitos políticos suspensos: 78 deputados federais, cinco senadores, 151 deputados estaduais, 22 prefeitos e 23 vereadores; 66 professores foram expulsos das universidades ou aposentados compulsoriamente. Entre eles Fernando Henrique Cardoso, Florestam Fernandes e Caio Prado Júnior. Entre os primeiros artistas presos, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Marília Pera.

Com o AI-5, qualquer suspeito de “subversão” podia ser preso por até 60 dias, ficando incomunicável nos dez primeiros. Nessa fase, a tortura corria solta nos porões, para arrancar delações e depoimentos autoincriminadores. Com o AI-5, a ditadura rasgava a fantasia. Como recorda o jornalista Franklin Martins, um dos líderes do levante estudantil de 1968: “O AI-5 veio porque a forma de ditadura inicialmente estabelecida não conseguia segurar o que estava acontecendo no Brasil. Não segurava o movimento estudantil, a intelectualidade, os artistas, a aliança política que começou a haver com a Frente Ampla, as primeiras greves operárias pós-64, o STF que dava habeas corpus, a Câmara que negou licença para a abertura de processo contra o deputado Márcio Moreira Alves. A resistência havia crescido tanto que aquela ditadura inicial, que cerceava direitos mas ainda não era uma ditadura terrorista, deixou de funcionar. Então soltaram a tigrada em cima de todo mundo”.

Sob Médici, foram criados os Doi-Codis e os centros clandestinos de tortura, em que muitos militantes encontraram a morte. Seus corpos foram incinerados, lançados ao mar, esquartejados ou mutilados. Tal como em alguns discursos atuais, havia um “inimigo interno” a ser combatido. Quando Bolsonaro fala em acabar com os “bandidos vermelhos”, e seus seguidores bradam contra um abstrato comunismo, estão ecoando a ditadura.

Geisel, sucessor de Médici, é lembrando como pai da abertura mas, em seu governo o Exército liquidou com os sobreviventes da guerrilha do Araguaia. A repressão assassinou dez dirigentes do PCB e três do PC do B, na Chacina da Lapa. Segundo Élio Gaspari, foram 42 os mortos no período, 39 dos quais “desaparecidos”, e 1.022 denúncias de tortura. Foram proibidos 47 filmes, 117 peças de teatro e 840 músicas. Chico Buarque era cliente preferencial.

Tenho vaga lembrança do 13 de dezembro mas tenho forte lembrança da noite de 31 de dezembro de 1978, em que Geisel anunciou o fim do AI-5, em sinal de que a abertura avançava. Em verdade, a sociedade havia começado a quebrar os dentes da ditadura. Naquele ano, liderados por um jovem sindicalista, Luiz Inácio Lula da Silva, os metalúrgicos haviam desafiado o regime com uma greve proibida. O movimento estudantil, quebrado pela repressão em 1968, estava de volta e eu participava dele na UnB. Em 1977, fizemos uma greve que resultou na segunda ocupação da universidade por tropas. O clamor pela Anistia estava nas ruas. A luz começava a despontar.