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Atiçando receios

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Há um claro empenho do “establishment” em “naturalizar” Jair Bolsonaro, em apresentá-lo como alguém mais suave, previsível e comprometido com os valores democráticos do que o candidato raivoso, e dotado de mais clareza sobre o governo que fará, embora não tenha apresentado uma agenda na campanha. Mas ele mesmo, nestes dois dias como presidente eleito, não colaborou, atiçando os temores em linha oposta ao discurso escrito que fez no domingo, comprometendo-se com a Constituição e o privado das liberdades democráticas.

Nestes dois dias, ele avançou com a tática de dizer e desdizer-se, indo e voltando em promessas ou ameaças. Assim, mais adiante poderá fazer uma coisa ou outra, sem que lhe cobrem quebra de compromissos. Parece estar aplicando o método das “aproximações sucessivas”, de que falou seu vice Mourão naquela fala que o projetou nacionalmente em 2017, ao defender um golpe militar.

Ontem foi confirmada a fusão do Ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura, da qual Bolsonaro havia recuado após as primeiras reações. No dia 23, sete ex-ministros da pasta, de diferentes partidos, assinaram artigo contra a medida. Mas como o candidato vencedor não foi a debates, não firmou compromisso público, manteve a fusão que agrada aos ruralistas e representará gravíssimo retrocesso nesta área.

Soubemos quem serão os dois bicudos do governo. O deputado Onyx Lorenzoni, futuro chefe da Casa Civil, desqualificou a reforma previdenciária de Temer como “remendo”. Horas depois Paulo Guedes rebateu: “é político falando de economia”. Em sintonia com o economista, o eleito anunciou uma conversa com Temer para tentarem votar agora, neste lusco-fusco da legislatura, a reforma arquivada. Eis aí um sinal de que, apesar dos 27 anos como deputado, Bolsonaro não conhece a Casa como diz. Sempre foi do baixo clero, nunca foi líder nem membro da Mesa. A metade dos deputados que não se reelegeu não tem razão nenhuma para fazer-lhe este favor. O PT, que estava disposto a uma trégua, ontem avisou que sua primeira ofensiva será contra a iniciativa. O próprio Rodrigo Maia, presidente da Câmara, advertiu: “Votar qualquer matéria, Previdência ou não, para o futuro governo sofrer uma derrota, eu acho que é ruim para o governo que entra”.

Quem conhece o Congresso sabe que não pode dar certo a formação da maioria através da negociação direta com 300 deputados, sem a mediação dos partidos. Eles estão fracos, é verdade, mas é através deles que o sistema político funciona.

Que Paulo Guedes teria um superministério era sabido. A surpresa ontem foi o anúncio de que a fusão englobará Fazenda, Planejamento e também Indústria e Comércio. Industriais e exportadores não gostaram. Depois, o experimento traz a má lembrança do superministério da Economia criado por Collor para Zélia Cardoso de Mello.

Nas entrevistas de anteontem às TVs Record e SBT, Bolsonaro conseguiu ser comedido mas, na TV Globo, o desconforto visível na expressão facial acabou aflorando nos ataques ao jornal “Folha de S. Paulo”, amplamente repudiado. É desonesto afirmar que, na relação com a imprensa, ele se aproxima do PT. As verbas publicitárias, nos governos petistas, foram sempre distribuídas segundo critérios técnicos, de audiência e circulação. Não foram usadas para retaliar os veículos mais hostis.

Ele anunciou, meio de raspão, a privatização da EBC. Eu, que implantei a empresa, duvido que venha a vendê-la, a não ser que crie outra estrutura que responda por atividades de comunicação governamental. Seu plano deve ser extinguir a TV Brasil, na contramão de todas as democracias ocidentais, que estimulam a concorrência sem abdicar da mídia pública.

A vida de Lula

A senadora Gleisi Hoffman proclamou ontem em voz alta um incômodo muito sussurrado no PT: “Tememos pela vida do presidente Lula”. Tendo Bolsonaro dito que ele apodrecerá na cadeia, talvez se ache dono do preso, que está sob a custódia do Judiciário. Já ninguém acredita que Toffoli pautará em 2019 a revisão das prisões em segunda instância.