COISAS DA POLÍTICA

Brasil é um país amante da Paz

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Publicado em 15/10/2023 às 06:12

Alterado em 15/10/2023 às 11:21

O barão do Rio Branco (sentado), com Domício da Gama, Raul do Rio Branco e Hipólito Araújo, em missão diplomática em Berna Foto: reprodução

Muita gente não consegue entender a linguagem diplomática. A função da diplomacia é superar divergências e encontrar consensos para a garantia da Paz. Há os que preferem os tambores da guerra, cujo rufar aniquila seres humanos, a flora e a fauna. A situação mais extrema foi o uso das duas bombas atômicas lançadas pelos Estados Unidos sobre Hiroshima e Nagasaki – para fazer render o Japão e amedrontar a então União Soviética, que se expandira pelo Leste europeu. Hoje, faz-se uso de armamentos modernos, mas não menos destruidores: armas químicas como o napalm e outros gases tóxicos. Sem falar dos sofisticados recursos balísticos de mísseis teleguiados e drones. Infelizmente, a tecnologia da guerra avança mais rápido do que pedem as soluções de carências – não digo mais em tempos de Paz – mas nos interregnos entre uma guerra e outra. Os conflitos surgem em vários continentes.

A diplomacia brasileira tem um ícone: José Maria da Silva Paranhos Júnior, mais conhecido como o barão do Rio Branco, nome que batiza várias avenidas e praças do Brasil afora e batiza o Instituto Rio Branco, que garante a formação dos diplomatas do Itamaraty. Desde o fim da Guerra do Paraguai (12 de outubro de 1864 a 1º de março de 1870), movida pela Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) contra o Paraguai, nos estertores do Império de D. Pedro II, não houve mais envolvimento direto do Brasil em iniciativas de guerra. E graças à diligente atuação do barão, desde a Proclamação da República Federativa do Brasil, o território brasileiro ganhou uma área de 900 mil km2 sem ser preciso disparar um único tiro. Antes, uma área igual ou maior foi sendo tomada com massacre aos índios pelos garimpeiros e capitães do mato que se embrenharam pelo sertão em busca de escravos fugidos [por sinal, o pai do barão, o visconde do Rio Branco, atuou diplomaticamente numa pendência com a Argentina sobre demarcação de limites do “espólio” do Paraguai, na qual atuou como árbitro o presidente dos Estados Unidos, Grover Cleveland. Estudioso de geografia, acompanhando o pai, desde jovem, o barão colecionava mapas do Brasil, feitos pela Coroa Portuguesa ou por reinos europeus, que muito ajudaram a convencer o americano da posição brasileira].

Há mais de um século (com exceção da 2ª Guerra Mundial), quando foi inevitável entrar no conflito, o Brasil só forma tropas para garantir a Paz, integrando as missões de Paz das Organizações das Nações Unidas, os conhecidos “Soldados da Paz”, de capacetes azuis, os “Peacekeepers”. A 1ª missão brasileira foi em Suez (para garantir a abertura do canal, em 1956, no governo JK). E a 1ª Operação de Manutenção da Paz liderada pela ONU ocorreu na Palestina. A carta de criação das Organização das Nações Unidas, que sucedeu a fracassada Liga das Nações, que não conseguiu garantir a paz entre a 1ª e a 2ª guerras, foi criada oficialmente a 24 de outubro de 1945, sendo ratificada pela China, França, União Soviética, Reino Unido, Estados Unidos e outros signatários. Por isso, o Dia das Nações Unidas é comemorado a 24 de outubro. Daqui a duas semanas, portanto, a ONU precisa provar seu valor.

Capacetes azuis em ação

Durante a 2ª Guerra, com a derrota das forças alemães e italianas, que tinham se aliado a alguns países árabes e à Turquia, o Reino Unido assumiu o controle da região, o Levante. Mas a manutenção da Paz entre os judeus que foram perseguidos na Europa e vieram para fundar colônias na região (seguindo o movimento iniciado por Teodor Herzl, anterior à 1ª Guerra) e os vizinhos árabes e palestinos, que iam perdendo seus territórios, custava caro aos ingleses. Ante a pressão internacional, dos altos custos militares de ocupação da Palestina e ações guerrilheiras de grupos judeus, a Grã-Bretanha levou a questão à recém-nascida Organização das Nações Unidas. Se a ONU propusesse solução de consenso, a Inglaterra abriria mão do seu Mandato na Palestina. Em abril de 1947, um Comitê Especial das Nações Unidas propôs a partilha da Palestina em um Estado judeu (já com cerca de 650 mil habitantes) e um Estado árabe-palestino (com o dobro dessa população). Hipocritamente, o Reino Unido se absteve.

A 1ª atuação das Forças de Paz da ONU veio pouco após a proclamação oficial da criação do Estado de Israel, por Ben Gurion, em 14 de maio de 1948, seis horas antes do fim do mandato britânico na região do Levante. Os Estados Unidos e a União Soviética, as duas potências hegemônicas após o fim da 2ª Guerra, logo reconheceram o novo Estado. Mas, no dia seguinte, árabes e palestinos se uniram para atacar Israel. Os judeus resistiram e venceram. E conquistaram 78% do antigo território palestino (22% a mais do que previa o plano de partilha da ONU para alojar a população árabe). Assim, em 29 de maio de 1948, ocorreu a 1ª intervenção dos capacetes azuis após a 2ª Guerra. Em 1949, firmou-se um 1º acordo de paz entre os árabes e o Estado de Israel, já reconhecido pela comunidade internacional, incluindo o Brasil.

Sete décadas de conflitos

A história acumula 75 anos de conflitos pela região, com a não concretização do plano da ONU que compreendia a convivência de dois Estados. Desde a sua criação, a ONU evitou que conflitos regionais se transformassem em grandes guerras, mas não conseguiu a Paz. Porém, suas Operações de Manutenção da Paz têm sido essenciais à contenção das áreas dos conflitos. Em mais de sete dezenas de missões o Brasil já participou de 41 e contribuiu com mais de 58 mil militares e policiais.

A maior contribuição foi durante a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, mais conhecida como MINUSTAH. O Exército brasileiro comandou o componente militar por 13 anos e o país enviou 37 mil militares e policiais para a operação. A missão foi comandada pelo general Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional de Bolsonaro. O Exército brasileiro acabou participando de carnificina em Porto Príncipe e a ONU instou o governo Dilma a remover o general Heleno do comando da tropa.

Antes, tropas do Brasil se saíram bem em duas intervenções no Timor-Leste para garantir a independência da antiga colônia portuguesa contra a poderosa Indonésia, país com 274 milhões de habitantes, a maioria muçulmanos. Atualmente, militares brasileiros integram força de Paz da ONU, na República Democrática do Congo.

O 2º secretário-geral da ONU, o sueco Dag Hammarskjöld (que assumiu o comando da organização ao fim da guerra dos Estados Unidos na Coreia, de 1950 a 1953, que terminou com a divisão do país em dois, como ficara acertado na Conferência de Potsdam, em 1945, e perdura até hoje) e faleceu em suspeito acidente de aviação da África, em 1962, dizia, pragmaticamente: A missão da ONU referente à manutenção da paz estava “amparada pelo “capítulo seis e meio” da Carta, situando-se entre o capítulo VI, que requer que "os Estados membros resolvam suas disputas por meio da mediação, negociação e arbitragem", e o capítulo VII, que "outorga ao Conselho de Segurança a competência para manter a paz e a segurança internacionais por meio de uma intervenção forçada" (isto é, missões de imposição da paz). O Brasil, incorporando o espírito diplomático e conciliador do barão do Rio Branco, tradicionalmente, tem fortes reservas em participar de intervenções baseadas no capítulo VII, preferindo contribuir para aquelas baseadas no capítulo VI que exigem consentimento das partes envolvidas em um conflito.

Por isso, com exceção do período mais duro do regime militar (1969-1985) – quando a participação em missões de Paz da ONU implicitamente levava ao reconhecimento da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, o Brasil ficou excluído de integrar o Conselho de Segurança da ONU (que tem cinco membros permanentes, as potências nucleares com direito a veto: EUA, URSS (atual Rússia), China, Reino Unido e França) e outras cinco nações que, em sistema de rodízio, pode ocupar – como agora em outubro, a presidência do CS da ONU - o Brasil insiste para que as missões de Paz sejam criadas multilateralmente e lidem com o que considera como as causas primárias da guerra: pobreza, subdesenvolvimento e desigualdades econômica e social. A última participação fora no biênio 2020-2011, com a volta no ano passado e 2023. Como membro da ONU e do CS, o Brasil sempre defendeu a paz e postula a ampliação de assentos fixos para os membros permanentes, com a incorporação de representantes da Ásia (Índia ou Indonésia), Austrália, Europa (Alemanha), um país árabe e África do Sul pelo continente africano.

Lula segue a carta da ONU

Após algumas derrapadas de linguagem em relação ao conflito criado pela invasão da Rússia à Ucrânia, no qual, desde o evento (em fevereiro de 2022, no governo Bolsonaro), o Brasil tem mantido sua natural neutralidade, e o presidente Lula, já pensando na presidência do Conselho de Segurança e na tradição brasileira, lançou a ideia de uma trégua para abertura de negociações de Paz com intermediação de outros países. Salvo os atores diretamente envolvidos no conflito e os fornecedores de armas, a Paz interessa à grande maioria das populações nacionais, pois ela ajuda a baratear os preços dos alimentos, dos fertilizantes usados na produção de comida e dos combustíveis.

Com a agravante de que há muitos cidadãos brasileiros nos dois territórios em conflito desde as incursões terroristas, em Israel, no sábado passado, dia sagrado para os judeus ortodoxos, com assassinatos e capturas de reféns que não guardaram o “Shabat” e estavam em uma “rave” no deserto, quando membros do grupo palestino Hamas, de influência iraniana, e que controla política e militarmente a Faixa de Gaza, escalaram o conflito latente e permanente na região, com o violento revide de Israel, prometido pelo primeiro-ministro Benjamin Nethanyahu, o Brasil, sob orientação direta do Itamaraty - que ampliou seu protagonismo enquanto o presidente Lula se recuperava da cirurgia no quadril - seguiu, fielmente, a cartilha do barão do Rio Branco.

O Brasil se empenhou, em 1º lugar, em proteger seus cidadãos. Fez esforços diplomáticos, junto aos lados envolvidos no conflito, para o resgate de quase tantos turistas brasileiros quantos os que morreram nas primeiras horas, nos dois lados da fronteira. Aviões da FAB e da presidência da República foram deslocados à região. Ou para aguardar janela de escape aos brasileiros mais ameaçados na Faixa de Gaza. O governo do Reino Unido, bem mais rico que o Brasil, cobrou 300 libras (R$1.800) por cada passagem aérea, em trajeto bem mais curto até o Oriente Médio. O Estado brasileiro assumiu o ônus. Ato contínuo e simultâneo, com a autoridade de quem presidiu a sessão da ONU que homologou a criação do Estado de Israel, no comando do CS, o Brasil instou as duas partes a abrirem corredores humanitários para a retirada de civis, em especial, mulheres e crianças, as maiores vítimas dos conflitos. Por enquanto, os ânimos estão mais preparados para a guerra. Mas, há que se trabalhar pela sensatez da Paz.

Na mídia brasileira e, sobretudo, nas redes sociais, onde o ódio impera desde a campanha eleitoral de 2014, e ganhou potência exponencial depois do surgimento do bolsonarismo, surgem muitas vozes condenando o governo Lula por não tratar o grupo Hamas como terrorista. É uma questão delicada, mas que tem amparo nas próprias resoluções da ONU. Até aqui, embora sejam inegáveis as atrocidades da escalada terrorista do atentado dos membros do Hamas no sábado 7 de outubro, não se pode estender a qualquer filiado do Hamas o epíteto de terrorista. E muito menos aos palestinos.

Por isso, como o Brasil ainda exerce, na presidência do Conselho de Segurança da ONU, a função de mediador de uma trégua, da tentativa de abertura de um caminho para a Paz ou de menos sofrimento para as comunidades do Oriente Médio, em particular a judeus e palestinos, seria contraproducente fechar uma porta tachando os palestinos da Faixa de Gaza, sob controle do Hamas, de terroristas. Nem todos o são. Quando a ONU reconhecer isso no seu CS, não haverá como o Brasil deixar de tratar assim o Hamas, ainda que defendendo a autodeterminação do Estado Palestino.

BBC não chama Hamas de 'terrorista'

John Simpson, editor de Assuntos Mundiais da BBC, em Londres, explicou, em artigo esta semana, ante as críticas veementes de leitores, ouvintes e espectadores, porque a BBC evita de taxar o Hamas de “grupo terrorista”.

“Terrorismo é uma palavra carregada, que as pessoas usam para se referir a uma organização que desaprovam moralmente. Simplesmente não é função da BBC dizer às pessoas quem apoiar e quem condenar – quem são os mocinhos e quem são os bandidos. Salientamos regularmente que os governos britânicos e outros condenaram o Hamas como uma organização terrorista, mas isso é problema deles. Também realizamos entrevistas com convidados e citamos colaboradores que descrevem o Hamas como terrorista”.

O papel da imprensa

E Simpson continua explicando o papel da imprensa: “O ponto principal é que não dizemos isso com a nossa voz. Nosso negócio é apresentar os fatos ao nosso público e deixá-lo tomar suas próprias decisões”.

Na verdade, é claro que muitas das pessoas que nos atacaram por não usarmos a palavra terrorista viram as nossas fotos, ouviram o nosso áudio ou leram as nossas histórias e tomaram decisões com base nas nossas reportagens, por isso não é como se estivéssemos escondendo a verdade de alguma forma – longe disso”.

Jornalismo compreende os relatos (com filmagens e fotos) dos fatos. Opinião é nos editoriais ou em colunas, como esta.

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