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O carro adiante dos bois na Covid-19

No próximo sábado dia 31 de outubro, se comemoram 116 anos de publicação do Decreto Lei 1.261 que instituiu a obrigatoriedade para a vacinação dos maiores de seis meses contra a varíola

Acervo JB -
Oswaldo Cruz
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No meio do outono no Hemisfério Norte e a menos de 10 dias da eleição americana de 3 de novembro, que vai dizer se a maior nação do mundo segue sob o comando de Donald Trump ou volta à administração democrata, com Joe Biden, a manchete de ontem do site do tradicional e respeitado “Financial Times” fala por si: “EUA record worst covid-19 week since summer peak”. Em tradução ligeira: “EUA registram pior semana da covid-19 desde o pico do verão”. E numa linha de apoio, o FT acrescenta: “Surto no Meio-Oeste eleva o total nacional de novos casos para um recorde de 83.000 na sexta-feira”.

Os números da semana que passou são alarmantes nos EUA e nos principais países europeus e não deixam dúvidas de que a covid-19 está longe de arrefecer seus estragos na vida das pessoas, com impactos na economia e no emprego. O “New York Times” estampava ontem a seguinte manchete: “Surto de novo coronavírus terrível em todo o coração da América”, informando que “Os EUA estabeleceram um recorde em um único dia de 82.154 novos casos na sexta-feira, menos de duas semanas antes do dia da eleição”. E, diante do risco de recidiva mais forte anuncia que “Dois ensaios de vacinas foram retomados após uma pausa por questões de segurança”. Outra chamada do site diz ”A Europa também se prepara para um inverno sombrio, à medida que o vírus se espalha pelo continente”.

O mundo acumulava até ontem 42,211 milhões de casos comprovados de contaminados pela covid-19 com 1,143 milhão de mortos. A grande parte dos contaminados em todo o mundo escapou com sequelas, mas está fora de perigo. Nos EUA foram 8,540 milhões de casos e 224 mil mortes. Para uma população de 329 milhões de habitantes, é mais do que as mortes em todas as guerras posteriores à 2ª Grande Guerra (mais que Coreia, Vietnam, Iraque e Afeganistão, juntas). O que preocupa é que a média de novos casos cresceu 34% na última semana, concentrados nos estados do Meio-Oeste e no entorno das Montanhas Rochosas. Em uma semana foram mais 450 mil casos.

Na Europa, que acumulou mais de 250 mil mortes neste sábado, a situação é novamente preocupante e levou alguns países como França, Itália e Espanha a restringirem fortemente a circulação de pessoas. A França, com 34,5 mil mortes para 1.041 milhão de casos, teve, só nos últimos sete dias, 206 mil novos contágios. A Alemanha se saiu bem no verão, acumula 418 mil casos e 10 mil mortos para uma população em torno de 88 milhões, acumulou, mas teve, na última semana, 61 mil novos casos. Na Espanha, foram 109 mil casos em uma semana. No Reino Unido, mais 141 mil contágios. Na Itália, os números foram de 93,6 mil novos casos. Proporcionalmente, para um país de 55 milhões de habitantes, bem menos que os 85 mil da Bélgica (11,4 milhões de habitantes, menor que a capital de São Paulo) ou os 60,7 mil novos casos na Holanda (que inclui províncias do Caribe e o Suriname). Note-se que os Países Baixos têm uma população de 17 milhões, praticamente igual à do Estado do Rio de Janeiro. Aqui, são 20 mil mortos, contra 7 mil lá.

E a situação do Brasil? Com 212 milhões de habitantes e 5,353 milhões de contágios acumulados (com quase 90% já recuperados) e 156,4 mil mortes, estamos em 2º lugar em total de mortos, atrás dos EUA e ameaçados pela gigantesca população da Índia (1.380 milhões) que já tem 7,8 milhões de casos e se aproxima das 118 mil mortes (só na última semana, o país de Gandhi teve 382 mil novos casos e quase 5 mil mortes). Se a curva do Brasil seguir em queda, a Índia pode nos ultrapassar em óbitos, pelo tamanho da população.

Estamos melhores que a relação per capita da Bélgica. Comparemo-nos com o México: com 126,5 milhões de habitantes (57% do total do Brasil), acumula 88 mil mortes (56% das mortes no Brasil); ou com a Argentina: com 45 milhões de habitantes, pouco menos que os 46,4 milhões de São Paulo, nossos vizinhos têm 1,089 milhão de registros e 28,3 mil mortes, mas na última semana o país teve 103 mil novos casos (São Paulo acumula 1.083 milhão de casos e 38,6 mil mortes). Na última semana, houve registro de 6,7 mil novos casos

O Ceará ainda é o 3º estado em casos e óbitos (9.244 mortes segundo o Ministério da Saúde, até dia 23 de outubro). Mas Minas Gerais, dono da 2ª população do país, com 21,3 milhões de habitantes ameaça superar o Ceará em óbitos: eram 8.486 no dia 23, com tendência crescente. A Bahia, 4º estado mais populoso, com 14,9 milhões, já se aproxima com 7.432 mortos. Mas é bom observar a alta letalidade no Planalto Central, especificamente o estado de Goiás, em cujo território está inserido o Distrito Federal, que tem Brasília como centro do poder no Brasil. Goiás tinha 5.539 mil mortes até dia 23 e o Distrito Federal, 3.613 óbitos (na soma dos dois, dá 9.152, quase igualando as baixas do Ceará).

É aconselhável que os três poderes da República, concentrados em Brasília, reflitam sobre isso no momento em que se discute a obrigatoriedade ou não de os brasileiros serem vacinados contra a covid-19. Como ainda não existe uma vacina testada e aprovada entre as várias dezenas que estão sendo desenvolvidas por centros científicos e empresas de alta tecnologia farmacêutica, parece uma discussão extemporânea. Ou anacrônica, como se tentassem colocar o carro adiante dos bois.

Por sinal que no próximo sábado dia 31 de outubro, se comemoram 116 anos de publicação do Decreto Lei 1.261 que instituiu a obrigatoriedade para a vacinação dos maiores de seis meses contra a varíola. Neste mais de um século e três lustros, o Brasil e o mundo mudaram muito. O homem já foi à Lua, inventou a bomba atômica, fez uma revolução agrícola, sacrificou o meio ambiente e está novamente às voltas com um vírus mais poderoso que o da Gripe Espanhola, que assolou o mundo de 1915 a 1918. Mas o obscurantismo falou mais alto na ocasião e fomentou, em novembro de 1904, a chamada “Revolta da Vacina”. E agora ameaça deixar milhões de brasileiros vulneráveis, como já ficaram milhares de crianças que não foram recentemente vacinadas contra o sarampo, vírus que voltou a grassar em terras brasileiras.

A história registra, nas manchetes, que o povo do Rio de Janeiro se rebelou - de 10 a 16 de novembro - contra o decreto do presidente Rodrigues Alves que, por inspiração do diretor-geral de Saúde Pública, o sanitarista Oswaldo Cruz (que deu origem à Fundação Instituto de Manguinhos, um dos maiores centros brasileiros de biotecnologia, instalado nas terras de seu castelo às margens da Avenida Brasil) obrigava a população a se vacinar contra a varíola. Vozes de sábios, como Rui Barbosa, se insurgiram considerado mais importante o direito à liberdade individual que a saúde coletiva.

A verdade é que houve um caldo de cultura e ressentimentos que fomentou a “Revolta da Vacina”, muito além do decreto. Com o fim da escravidão (1988) e a derrocada da cultura do café no Vale do Paraíba e na Zona da Mata de Minas, milhares de ex-escravos e lavradores acorreram para a capital da República. Em 16 anos, a população do Rio de Janeiro cresceu 55%, passando dos 800 mil habitantes. Mas a economia se abria para um novo ciclo, com a introdução do capitalismo, em substituição ao regime escravocrata.

O Rio era uma cidade insalubre e necessitava ser modernizada. A peste bubônica e a febre amarela impediam a chegada de navios que trariam imigrantes e turistas da Europa. Quem se arriscaria a vir para um país pouco urbanizado e com doenças tropicais desconhecidas? O cais do porto era uma lástima e as vias de acesso ao centro da capital eram precárias. Rodrigues Alves nomeou o prefeito Pereira Passos para modernizar a área portuária da cidade, desde a ponta do Caju até a Prainha, onde surgiu o novo cais do porto, cortado pelas duas pistas da Avenida Rodrigues Alves.

O estopim da revolta foi a abertura da Avenida Central (futura Avenida Rio Branco), saindo da Praça Mauá até a Cinelândia. Centenas de casas foram derrubadas (a maioria de população humilde). Um dos líderes da revolta, que teve adesão de militares contrários a Rodrigues Alves, foi o senador Lauro Sodré. De tanto que derrubou para abrir novas avenidas e melhorar a circulação do ar (que facilitava a tuberculose, como ocorre hoje em comunidades como a Rocinha), Pereira Passos foi apelidado de “bota abaixo”. Um precursor de Carlos Lacerda que removeu várias favelas insalubres da Zona Sul.

Mas as medidas profiláxicas aplicadas por Oswaldo Cruz, que criou os batalhões de “mata-mosquitos” contra o transmissor da febre amarela, funcionaram e os surtos de peste bubônica e febre amarela foram revertidos. O que animou Oswaldo Cruz a propor a vacinação contra a varíola. O tempo mostrou quem tinha razão. Em 1907, a febre amarela tinha sido erradicada no Rio e quando surgiu um surto de varíola, em 1908, logo a população correu aos postos de vacinação. Anos depois, em 1917, durante conferência de homenagem à memória de Oswaldo Cruz, Rui Barbosa elogiou o cientista dizendo que ele (Cruz) não cedeu aos destemperos do obscurantismo popular e da oposição. Oswaldo Cruz foi condecorado na Alemanha com o prêmio mais importante de higiene e saúde pública da época.

Se doutos como Rui Barbosa fizeram ato de contrição e reconheceram que estavam errados há mais de um século, a urgência do enfrentamento da covid-19 não permite tergiversações. Muito menos atitudes negacionistas ou tipo Fla X Flu.

Se o Brasil optar por se colocar no papel de “pária” também na questão da vacina contra o novo coronavírus, certamente sua população sofrerá as consequências diretas e indiretas da livre exposição a um vírus de alta letalidade. Como espera o Brasil receber turistas estrangeiros (ou ter o cidadão brasileiro direito de desembarcar na Disney ou na Europa) se não tiver vacinado em massa sua população de 212 milhões de habitantes? E os alimentos exportados pelo Brasil estarão sempre correndo o risco de vetos por questões sanitárias. Ainda há tempo de se evitar um erro monumental.