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Pouca Justiça e muita milícia, os males do Brasil são

As milícias são as sucessoras das "polícias mineiras" que proliferaram na Baixada Fluminense e nas periferias dos grandes centros urbanos em meados do século passado

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Mário de Andrade, em sua obra seminal “Macunaína, o herói sem nenhum caráter”, dizia: “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são”. Em 2028, a obra completa seu centenário, mas continua muito atual para descrever o caráter macunaímico do povo brasileiro. Nosso herói nasce preto de uma índia, no fundo da mata virgem. Cresce negro (papel interpretado no magnífico filme de Joaquim Pedro de Andrade por Grande Otelo), mas vira branco louro ao tomar um banho numa fonte.

A mata virgem está muito rara, cada vez mais difícil de ser preservada da ação predatória da “máquina do gigante” (o capitalismo devastador), que ainda se vale de incêndios para abrir campos para o gado ou  poluir rios com o mercúrio na extração do ouro, mas a saúva segue sendo o terror dos agricultores (também sobressaltados por nuvens de gafanhoto) e a saúde anda muito mal, como atestam os 5,2 milhões que foram atingidos pelo novo coronavírus, causando mais de 153 mil mortes.

Macaque in the trees
Operação Centro Presente, no Rio de Janeiro (Foto: Foto: divulgação)

Mas os males deste Brasil atual, às vésperas de uma eleição municipal, continuam sendo a corrupção (que já era retratada em ”Macunaíma” pelo simplório “golpe do paco” e pela ação do poderoso Gigante), a pouca Justiça para dar cobro aos descalabros, e o excesso de milícia. Não, caro leitor, infelizmente não estou falando das “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Joaquim Manuel de Macedo, publicado em 1853. As milícias eram as forças militares auxiliares à Guarda Nacional do Império. As nossas milícias são de outra ordem. Ou melhor, desordem.

As milícias são as sucessoras das “polícias mineiras” que proliferaram na Baixada Fluminense e nas periferias dos grandes centros urbanos em meados do século passado. Diante da suposta ineficiência das polícias civil e militar no combate ao crime, grupos de policiais civis e militares (da PM, dos Bombeiros) e ainda guardas penitenciários formavam milícias para impor a ordem. Claro que em troca de “taxas de contribuição”. Como a escala de trabalho dos policiais permite folgas a intervalos acima de 48 horas de plantão (raramente cumpridas), o cidadão contribuinte que julga sustentar as polícias, a PM, os bombeiros e mais recentemente a Guarda Municipal com o dinheiro dos seus impostos, é forçado a pagar novamente para ter segurança. Ela ocorre (por bem ou por mal, infelizmente por mal), mas quem efetivamente a exerce são os policiais do grupo que “faz a segurança” quando estão de plantão.

O sistema do “Centro Presente”, “Copacabana Presente” e sucessivos bairros onde o modelo de bico foi implantado com interveniência de entidades empresariais (que vivem com dinheiro de impostos, como o Sesc e o Senai), nada mais é do que a institucionalização das milícias que em algumas áreas trocou o regime de “lei e ordem” dos traficantes pela “lei e ordem” das milícias. Experimente você, caro leitor, perguntar a um dos simpáticos milicianos com coletes coloridos (vermelho e branco no Centro; verde e branco, em Ipanema) onde ele exerce a profissão principal dele. A resposta será “Bombeiro ou PM”.

Se essa aberração já não fosse muita, as milícias que operam sem colete se especializaram na distribuição de água engarrafada e gás nas comunidades, além do “gatonet” e do gato da luz. Uma ação da Polícia Civil do Rio que se desenvolveu em mais de duas etapas e envolveu forças do Bope e da Polícia Rodoviária Federal desmantelou esta semana poderosa facção que atuava na Zona Oeste, em parte da Baixada e na Costa Verde.

Mas o poder desta gente não para por aí. Sendo senhores de território, agem como os antigos “coronéis” dos velhos currais eleitorais do Norte e Nordeste que viviam garantindo os votos de cabresto dos eleitores dos rincões para as forças do governo. Só que isso foi no tempo do Brasil rural, em que mais de metade da população vivia no campo e a saúde (representada pela doença de Chagas e outras endemias) e a saúva eram duas pragas brasileiras. Hoje, com mais de 85% da população vivendo nas cidades, a atuação das milícias tem papel importante nas eleições. Basta ver como cresce a “Bancada da Bala” no Congresso Nacional e nas Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais.

Unidas a outras forças inequívocas que hoje controlam alguns dos maiores “currais eleitorais” do Brasil – a miríade de igrejas e seitas religiosas que tanto manipulam o voto dos fiéis/eleitores quanto funcionam, por estarem isentas de prestação de contas à Receita Federal sobre a entrada e saída de dinheiro, como imensas lavanderias de circulação de dinheiro. Há cultos aos domingos em que a féria do dia é recolhida não apenas por carros-fortes, mas por helicópteros, e o dinheiro, não raro, é trocado na segunda-feira por dólares para remessa em malas para o exterior. Em recentes escândalos com detenção de pastores, além de mansões nababescas e carrões de luxo, a Polícia Federal encontrou jatinhos com autonomia para ir até Miami. Muito convenientes.

Acompanho há muitos (desde 1964) a evolução das igrejas ditas evangélicas. Instalou-se próximo ao sítio de meus pais em São José do Vale do Rio Preto (então distrito de Petrópolis, emancipado em 1987), uma unidade da Assembleia de Deus. Em pouco tempo sumiram três jogadores da pelada que começava lá em casa após às 17 horas, quando o pessoal largava o serviço braçal. A um deles, com quem gostava muito de fazer tabelas no jogo, indaguei por que estava sumido? “Sou crente agora, e o pastor disse que a gente não pode jogar, ver televisão, ir ao cinema, nem beber”. As mulheres não podiam cortar cabelo e os rapazes só podiam namorá-las se entrassem para a Igreja. Assim, muitos cinemas fecharam no interior (a TV também ajudou, mas ainda não havia a febre das parabólicas) e muitos ‘craques’ penduraram o tênis precocemente.

Tentei argumentar que o “não jogar (sinuca ou carteado) era a dinheiro”, pois que mal faria jogar pingue-pongue ou vôlei, e futebol? Não adiantou. Pastores queriam controlar corações e mentes e os bolsos dos fieis.

Pastores evangélicos logo descobriram o poder da TV para seduzir o rebanho. Com o tempo, mulher podia cortar os cabelos, usar saia curta ou blusa decotada, e a prática esportiva não era proibida. O importante era pagar o dízimo. Pastores passaram a comprar emissoras de TV ou alugar horários nas grades da TV. Edir Macedo foi o mais criativo. Não me esqueço do reencontro com Paulo Cesar de Velasco (que conheci como assessor de imprensa do Banerj, na segunda metade dos anos 70, no governo Faria Lima, que fez a fusão da Guanabara com o antigo Estado do Rio de Janeiro). Uma amiga, Helena Wettl Gomes, foi testemunha. Estávamos na Rua Uruguaiana, quando uma voz de locutor de rádio me saudou “Menezes CÔoortes”. Reconheci-o (estava com blazer bege claro, uma pasta embaixo do braço, acompanhado de um senhor de terno). E perguntei: “Pois é, há quanto tempo, por onde você anda?”. E ele, carregando no sotaque: “Estou aí numa área de marquetingue!”. Minha amiga perguntou depois: “Quem é esse picareta?”.

Meses depois ele dava as caras num programa noturno da Rede Record, recém comprada pelo bispo da IURD, Edir Macedo “25ª Hora”. O marquetingue era da Igreja Universal do Reino de Deus. Depois, de Velasco se elegeu deputado federal por São Paulo e foi alto dirigente da IURD.

Vi surgirem desdobramentos de igrejas. A Assembleia de Deus, que tinha sede em São Cristóvão e foi presidida pelo pastor Manoel Ferreira, cindiu em duas, a segunda, a mais poderosa, Ministério de Madureira, tem à frente o pastor Silas Malafaia. O pastor R.R. Soares, primo de Edir Macedo, saiu da IURD para criar a Igreja Internacional da Graça de Deus. Outro pastor, Waldemiro Santiago, mais conhecido como o pastor do chapelão, saiu da IURD, onde pregou por 10 anos, para fundar a Igreja Mundial do Poder de Deus. Milionários, viraram grandes cabos eleitorais e procuraram jogar sua influência política para auferir benesses da Receita Federal, a quem devem quase R$ 1 bilhão.

O ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, não tinha uma igreja evangélica de preferência. Fazia jogo com todas, arrumando doações gordas, sabe-se lá de que origem, em troca de votos para si ou apadrinhados políticos. Formou bancadas em vários estados, que ajudaram na sua eleição em 2015.

Pastores viraram grandes eleitores, ao lado dos milicianos. Marcelo Crivella deve sua eleição a prefeito do Rio de Janeiro a essa dupla influência que nos infelicita há alguns anos. E ambos são cortejados e reverenciados por políticos. E as bancadas que ajudaram a eleger levam o Brasil para o obscurantismo, de braços dados com a ignorância.

Personagens como o senador Chico Rodrigues (DEM-RR) são eleitos com o apoio desses novos cabos eleitorais. Não há mais lugar para o lirismo de Macunaíma nesse Brasil atual, retrógrado e violento com o próximo e o meio ambiente.

Foto: divulgação - Operação Centro Presente, no Rio de Janeiro