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O mar é mãe

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"Se você quiser amar, vem comigo a Salvador", grita na minha alma essa beleza de Baden Powell, que se confirma na multidão estrondosa que toma a orla baiana no dia 2 de fevereiro. Gente de tudo quanto é lugar, de todas as sortes, cada uma com seu riscado de destino. E quem são essas pessoas? O que fazem ali? Sabem? Sabem, pois ainda que não conscientemente, o seu arquétipo sabe, seu DNA cultural sabe. São procissões de barcos enfeitados com flores, fitas e perfumes para ela, a rainha do mar. São milhares de litros de alfazema comandando o ar, tudo em gratidão à Yemanjá. E o curioso, mesmo quem não tem formação objetiva sob o tema também vai louvar. A festa da grande sereia é a única no Brasil em honra de um Orixá. Até onde sei, tudo mais é sincretista. Ao contrário das religiões judaico-cristãs, o feminino no candomblé tem poder, voz, autoridade. Yemanjá representa a soberania feminina no sagrado da criação. É ela a responsável pelas mentes , pelas identidades, pela origem, já que nas águas a vida começa. A Dona das Cabeças vem com sua maternidade universal acolher a imensa gratidão oferecida pela diversidade dos fiéis...Há mais gente à beira do manto azul a agradecer do que a pedir.

Gratidão também é fundamento da grande mãe, por isso uma cultura de vantagens individuais capitalistas e competitivas não nos aproxima dela. Machuca meu peito a ignorância que se tem das religiões de matriz africana. Filha do preconceito, tal ausência de saber nos deixa órfãos de conhecimentos básicos que fundamentam o amor à natureza, ao outro, à vida. No básico, Oxum representa as águas doces, portanto, quem é dela trata tais águas como sagradas. Da mesma maneira, um filho de Oxóssi não queima florestas, uma vez que é ele a própria floresta. No divino africano, a natureza é o altar, é ela o grande gongá. E um altar a gente não suja, não profana, não depreda. Simples assim. Só por isso deveríamos estudar a "mitologia" negra nas escolas. O querido Papa Francisco, com ousadia tem mexido na caixa de Pandora e vasculhado os bastidores sórdidos de uma pedofilia quase naturalizada no clero até aqui. Com a coragem de um líder espiritual independente e comprometido com a fé cristã genuína, ele tem punido padres abusadores e agora seu olhar de justiça, digno de um bom filho de Xangô, alcança os abusos de padres com freiras, coisa que já era murmurada no meu tempo de colégio, e jamais assumida pela igreja. No entanto, há uma torcida para que ele avance e tire a mancha machista e patriarcal que impede até hoje que mulheres tenham postos de comando no clero. Subalterno, o feminino ali não é tratado com o respeito e o poder que graça nos Terreiros. Em nossos ritos, o grande sagrado feminino é fundamento, não se subordina a ninguém.

Nasci no dia 2 de fevereiro, um luxo. Com o tempo percebi que me curo nas águas, que é neste elemento que minha essência se reconfigura e fortalece. É aqui, nesta terra de pretos, da maior população negra do Brasil, que o bicho pega na democrática festa! A ignorância moralista das mentes conservadoras de alguns políticos tentou tirar o nome de Yemanjá deste dia. Por quê? Talvez porque fique muito exposto este poder popular que leva uma multidão de todas as cores e idades à beira do mar na gloriosa data. Essa devoção pública a uma orixá de uma religião tão perseguida e amaldiçoada pelos seus preconceituosos opositores, revela que ninguém pode com ela. Fica explícito que o Brasil é macumbeiro. Não dá pra disfarçar. Pra quem comprou tantas alfazemas? Pra quem as rosas? Pra quem o barquinho de fitas e cheiros? Pra Jesus não é. A explícita contradição traz todo mundo para a mesma areia e devemos ficar orgulhosos disso. A rainha do mar, dona das ondas, da virada das marés ,tem em seu reino o futuro do mundo. Já está mais que anunciado que a água é o petróleo de amanhã. O disputado ouro numa seara na qual o Brasil ainda é rei.

Ninguém estranha ou crítica delírios e artimanhas da mitologia grega. Enquanto isso, a tão necessária cultura religiosa negra vem faltando à educação brasileira. Que falta que nos faz. Portanto, você que me lê, procure saber, passe por cima dos demônios que pintaram sob esse panteão interessantíssimo de deuses africanos. Entenda porque , mesmo sendo de outra religião , você vai à beira do mar no dia dela e isso faz sentido. Talvez todos nós brasileiros sejamos macumbeiros. Quem jogou uma flor no mar está envolvido.