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O sorriso de Margarida

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Inteligente, intuitiva, teimosa, criativa, inovadora, desobediente, e, desde sempre , meu grande exemplo. Trata-se de uma flor nascida antes de mim para iluminar minha infância de irreverências e, de subversões. Garida sempre foi a criativa animada que fazia de cada novo dia uma escalada para o inédito: “É verão, Lili, vamos cortar os cabelos das bonecas por causa do calor?” Talvez eu tivesse quatro anos e ela oito ou cinco e ela nove, mas me lembro de eu pequena fascinada atrás daquela irmã pretinha, qual um quilombinho, hoje digo, só indo na frente abrindo caminhos. Cortava aqueles cabelos como se fossem crescer e seguia com sua tesoura mágica fazendo cortes psicodélicos nas peninhas dos pintos que, não sei porquê, deixavam que ela realizasse sua arte. O beco que rodeava até o fundo da casa era o que nos separava da igreja. Minha avó Maria batia em Garida com o caderninho de escola dela. Quando apanhava, não chorava. Fazia um bico sério de guerreira. E só. Que menina corajosa.”Era pra ser menino”. Subia em muros, árvores, soltava pipa, andava de carrinho de rolimã e, inventava. “Esta boneca não passou a noite bem, vamos ter que operá-la”, e pegava a tesoura de costura da nossa avó severa, para fazer um corte no abdômen na bonequinha que andava.

Para ver se dava jeito nela e seu cardume de travessuras, Iná, sua madrinha, teve a ideia de colocá-la no coral da igreja.Garida fazia versões incríveis dos cânticos: “Seus filhos rebenta-os na oliveiras”. Quando na verdade era “seus filhos, rebentos de Oliveiras”.

Pensava nessas “diabruras” e ria, ria, ria. Iná a repreendia. Eu ria junto, aprendi a achar engraçado o avesso, os contrários, os caminhos que ninguém falou antes. Ela era minha minha heroína. Dizia-se que ela era mau exemplo para mim. Mas era na verdade é minha professora de novos olhares. “Repara como a hóstia do padre é maior do que a de todo mundo. Guloso, né? Deus me perdoe” E se benzia rindo. Sempre teve crise de riso, até hoje tem, não mudou nadinha. Ri em várias situações de onde o senso comum não espera tirar graça. Mas o olhar de Garida é de desenho animado ,vê o lado lúdico de existir. seguia suas instruções ainda menina, sem ver sua influência sobre mim. Estava do meu lado na primeira menstruação. Professora como primeira profissão, eu também. É de ciências humanas, apaixonada pela educação, psicanalista, palestrante e, pasmem todos, uma dona de casa impressionante. Por ter alergia a alguns produtos de limpeza, desenvolveu sua própria “marca”. Boa feiticeira, é dona de preparos maravilhosos à base de bicarbonato, vinagre, canela e outros segredos, capaz de limpar até a alma de uma parede branca, de uma pia, de um sofá. Hoje é o coração da família e o melhor bolo de chocolate que já se ouviu falar. Nenhum sobrinho deixou de ter uma fatia na boca da infância.

Seu pensamento é coletivo, era estudante ativista na ditadura. Feminista inaugural, me fez entender que ser uma nova mulher era ser independente. E era o que eu queria. Sua irreverência pode rir de tudo, até hoje: da palestra mais chata, de uma fisionomia carrancuda, de uma imagem que ninguém viu naquela cena.Suas filhas falam: “minha mãe deu uma saidinha para rir”. As crianças a amam. Brincam com ela de invenção.

Garida cuidando de mim no hospital e na casa dela era diversão garantida. Prática, moderna, cuida ,junto ao companheiro, a própria casa. Impecável, prepara o almoço e ainda, de dentro de suas sensuais camisolas, encontra tempo para estudos de seus cursos do dia seguinte. Quando eu acordava, tinha sempre um bilhete novo com as instruções do almoço, da medicação, assinado “Enfermeira chefe, Prêmio Negritude 2017”. Combinar humor. Imita vozes, sabe os tons e as melodias de muitas senhoras que habitam o imaginário de nossa infância no subúrbio repleto de histerias e outras cenas de uma realidade periférica. Em todas as festas de seus aniversários sempre houve a flor do seu nome no bolo, nas lembrancinhas. Hoje é a mais velha dos irmãos. As decisões afetivas e práticas da tribo acontecem sobre nossa cumplicidade. A desobediente virou autoridade. Gênia. Margarida Eugênia. Quando nossos alunos, e fãs nos confundem na rua, respondo: também a amo, “Garida é uma linda flor”. Aniversaria agora dia 5 de janeiro e continua sendo a flor que ri.

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