Siro Darlan, Jornal do Brasil
RIO - O cuidado com a criança como pessoa em processo de desenvolvimento não é uma das nossas melhores tradições. Desde o descobrimento do Brasil crianças, por não serem pessoas produtivas, não terem voz e nenhuma influência na vida política, têm sido objeto de ações caritativas, assistencialistas, da piedade pública e repressão social, mas nunca foram uma prioridade para o Estado. O choque de ordem , tão aplaudido por parcela significativa da sociedade, tem sido usado para escamotear ações de higienismo urbano como o recolhimento ilegal de crianças e adolescentes que se encontram nas ruas das grandes cidades como resultado da falência de políticas públicas de educação, saneamento básico, trabalho e habitação. Ora, por não serem eficazes as ações governamentais de respeito à dignidade da pessoa humana, optam pelo recolhimento puro e simples de seres humanos que são depositados nos abrigos que é o novo nome para o espaço destinado à exclusão dos indesejáveis , assim como foram os antigos campos de concentração nazistas. Apesar de completar no fim deste ano 20 anos de vigência, o Estatuto da Criança e do Adolescente ainda não é letra viva nas ações de governo, assim como também não tem sido interpretado como o legislador preconizara, no interesse superior da criança e do adolescente e levando em conta a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. Assim é que, ainda hoje há magistrados que influenciados pelo clamor de parte da opinião pública aplicam sanções de caráter penal a jovens que necessitam de ações socioeducativas. Ainda há executores das medidas socioeducativas transvertidos de carcereiros agindo com crueldade e realimentando a violência nas unidades de cumprimento de medidas de privação de liberdade. Na decisão recente envolvendo uma criança brasileira em disputa de sua guarda violou-se o princípio normativo da Carta das Nações Unidas, que obriga os tribunais a ouvirem as crianças e considerarem suas manifestações, autorizando com a frieza que não deve ter o operador de direito, sua deportação contra sua manifesta vontade, que era a de permanecer em solo pátrio. Ao testemunhar esse fato recordei-me que também o presidente Getulio Vargas, num gesto de boa vontade com o governo nazista de Hitler, deportou Olga Benário, grávida de uma criança brasileira afastando-a das pessoas amadas e entregando-a para ser sacrificada. Ontem como hoje, prevaleceram os interesses de Estado e não o superior interesse de uma criança brasileira. A intervenção vergonhosa da senhora Hillary Clinton em assuntos internos do Poder Judiciário brasileiro, assim como o deslocamento da competência de um juízo de família para a Justiça Federal corroboram a prevalência desses interesses. Perdemos uma oportunidade para comemorar os 20 anos da Lei 8.069/90 com a consolidação da cidadania das crianças brasileiras que precisam ser respeitadas com absoluta prioridade na elaboração dos orçamentos públicos e nas propostas de políticas públicas inclusivas. O martírio de Olga, segundo depoimento de Anita, sua filha, mostrou que vale a pena lutar por um mundo melhor para toda a humanidade, que não se deve compactuar com a injustiça, e que é necessário lutar para superar as injustiças e desigualdades sociais para que os homens encontrem maneiras de aperfeiçoar seus modos de viver. Espera-se que o sacrifício da criança brasileira expatriada possa servir de lição para que valorizemos os direitos fundamentais das crianças e adolescentes brasileiros e possamos transformar nossas aspirações protecionistas e filantrópicas em respeito aos seus direitos fundamentais como sujeitos de direitos que são por força do que está escrito no artigo 227 da Constituição da República.
Siro Darlan, além de desembargador, é membro da Associação Juízes pela Democracia e do Instituto dos Advogados do Brasil.