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Medo é que o vale-cultura vire um 'vale-pinga'

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Nilson Raman*, Jornal do Brasil

RIO DE JANEIRO - Tomara que dê certo. Na teoria, a ideia é ótima e essa poderia ser mesmo mais uma ferramenta importante de fomento, mas na verdade tenho uma grande preocupação com o vale-cultura. Tenho medo de que ele vire vale-pinga, vale-mercado ou vale-carne. Se juntar dois meses, um vale-panela. Se juntar cinco, vira um vale-pneu. Não vai demorar muito e vai haver promoção de passagens aéreas em troca de vale-cultura. Virará uma moeda paralela. Foi mais ou menos assim que eu vi acontecer com o vale-transporte, e as pessoas continuavam voltando para casa a pé.

Acredito que não faltem preços populares, não faltem ações culturais, nem falte acesso, e os preços dos ingressos estão bons, quer dizer, bons para o público. São vitoriosos os projetos do Sesc, do Centro Cultural do Banco do Brasil, da Caixa Econômica, dos Correios, do projeto de itinerância do próprio BB, dos editais da Petrobras, da Campanha Teatro para Todos, promovido pela APTR, enfim, hoje você tem na cidade ingressos a todos os preços e para todos os tipos de público. E pelo país, um enorme número de projetos acontecendo. A cena está legal, mas quanto mais melhor.

Também penso que a principal ferramenta de fomento não é facilidade, pois isso não falta, e não é isso que leva o público a um teatro, a uma exposição, ou qualquer manifestação artística ou cultural, seja lá qual seja, mas sim o interesse, a vontade de conhecer mais, a vontade de se conhecer mais, de perceber que existe muito mais a se pensar e a se fazer, por nós e pelo mundo, e isso passa pela educação. Antes da cultura é necessária a educação. Uma coisa puxa a outra. É como se fossem estágios: com um grau de educação, o acesso à cultura é inevitável, é essencial e será sempre transformador, porque a arte nos transforma.

O uso do vale-cultura não será nos textos ou em filmes brasileiros, de reconhecido valor artístico, mas nas realizações mais populares, que naturalmente já atingem todos, ainda ficando a dúvida quanto à qualidade do acesso, pois popularidade nem sempre quer dizer qualidade. Penso que quem vai se dar bem são os produtores e exibidores de conteúdo erótico, principalmente os que oferecem efeitos especiais e

explícitos.

Se for oferecido o vale-cultura à classe média também não será bom, pois já são frequentadores, e interferirá no mercado, aumentando os problemas econômicos já existentes. Não falamos do perfil segregador e excludente desta iniciativa. Cadê os desempregados?

Financeiramente falando, aprendi que sempre temos que saber o montante e a origem dos recursos envolvidos em qualquer questão, para uma melhor análise da sua validade pois, não nos enganemos, tudo tem custo e alguém sempre tem que pagar. Agora, se vamos ter algum tipo de recurso para ser investido no fomento à cultura, que seja feita uma análise profunda para saber qual a melhor ação a se tomar. E não precisamos ir muito longe, a questão da meia-entrada seria muito mais abrangente, muito mais importante para o mercado e atingiria toda a população, sem exceção.

*Nilson Raman, Produtor cultural e membro da APTR