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Katyn e meu avô

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Alfredo Sirkis *, Jornal do Brasil

RIO - O filme de Andzej Wajda sobre o massacre de 8 mil oficiais poloneses na floresta de Katyn no inverno de 1940 pela NKWD stalinista não se perde em explicações. Sua narrativa é cortante como uma navalha. O roteiro faz algumas digressões por narrativas paralelas, mas seu desfecho é sem contemplações. Um tiro na nuca. Cheguei a implicar com o roteirista, mas o resultado final é um filme vigoroso. Como em seu Homem de ferro, Wajda usa com ironia cenas de documentários de propaganda: a mesma história narrada de similar maneira, na versão nazi e na soviética, com a única diferença da atribuição da culpa. O horror supremo é perceber que, daquela vez, a versão nazi expressava a realidade dos fatos...

A Polônia foi atacada por Hitler, em setembro de 1939. Pouco antes fora assinado o famoso tratado de não agressão entre Molotov e Von Ribentrop pelo qual a Alemanha e a URSS dividiriam o pais entre si. O exército polonês combateu os nazistas mas, no leste, não resistiu à ocupação soviética. Entregou-se acreditando que o acordo entre Alemanha e URSS seria como foi efêmero e que logo acabariam aliados para combater Hitler. Stalin desmobilizou os soldados e manteve prisioneiros os oficiais. Pouco mais de 300 foram separados para serem reaproveitados e os restantes 8 mil foram assassinados na floresta de Katyn com tiros na nuca. Na mesma época, 14 mil civis poloneses, detidos noutros pontos do leste da Polónia e da URSS, também foram executados pela NKWD. Poucos dentre os mais paranóicos dos poloneses imaginavam que tudo isso fosse acontecer. Mas, de fato, Stalin tratou-os como fizera com a nata do próprio exército soviético: dois anos antes, expurgara sangrentamente milhares de oficiais, inclusive o jovem marechal Mikail Tukhartchevski, o mais brilhante estrategista do exército vermelho.

Um dos assassinados de Katyn foi um capitão dentista, de 42 anos, veterano da primeira guerra, Alfred Binensztok, morador de uma pequena cidade do leste da Polônia chamada Pinsk. Meu avô materno. Despedira-se da família, em setembro, para combater a invasão nazista, cheio de confiança de que, com o apoio da Inglaterra e da França, o maluco Hitler seria derrotado em poucas semanas. Sua unidade foi capturada no leste pelos soviéticos. Minha mãe, avó e tia foram deportadas para a Sibéria o que, paradoxalmente, salvar-lhes-ia a vida pois, em 1941, quando os nazistas atacaram o leste da Polônia, para chegar na URSS, exterminaram todos os judeus de Pinsk, 70% de sua população. Na Sibéria, elas ainda receberam uma carta de um campo de prisioneiros perto de Smolensk. Tudo ia acabar bem, logo voltaria... Alfred Binensztok soube dos planos do masacre na véspera por um cozinheiro russo com o qual fizera amizade e, junto com dois outros oficiais, conseguiu fugir do campo de prisioneiros. Depois se separaram para tentar conseguir trajes civis com os camponeses e escapar para a Polônia. Um único conseguiu. Anos depois, publicou um artigo numa revista idiche com o título Devo minha vida ao Dr Binensztok. No meu livro Corredor polonês procurei imaginar o destino de Alfred por um caminho ficcional com um final mais clemente: metralhado fugindo, caído num rio. Na realidade, não sei como o mataram. Seus documentos foram encontrados nas fossas comuns de Katyn e seu nome consta da Katinska Ljsta a famosa relação dos executados na floresta.

A parte mais densa e perturbadora do filme de Wajda é a da relação dos sobreviventes com a verdade no regime comunista do pós-guerra, que sustentou impavidamente e executou quem ousasse questiona-lo que o massacre ocorrera no ano seguinte, em 1941, pela mão dos nazis. Mas, após o colapso do comunismo, a verdade foi restabelecida. Esta, definitivamente, não foi, ao contrario de tantas outras, uma matança hitlerista, mas uma ação preventiva do camarada Stalin e seu leal executor Lavrenti Beria. Nada que não tivessem feito com seus próprios camaradas bolcheviques... Muitos anos depois, ao evocar o destino de meu avô na tribuna da Câmara dos Vereadores, fui aparteado por colega da esquerda ortodoxa sujeito até afável, médico de profissão garantindo que, se o camarada Stalin mandara matar, meu avô não poderia senão ser um contra-revolucionário... Fiquei sem saber se dava um cascudo naquela cabeça obtusa, se lhe explicava, pacientemente, que o dentista Alfred Binensztok era apolítico embora sua filha fosse de esquerda ou se iria cuidar de outra coisa, pois a insensibilidade e a burrice humanas, sobretudo as ideologicamente enfeitadas, não tinham mais remédio...

* Alfredo Sirkis é jornalista e escritor