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Meu amigo Alencar

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Antonio Olinto *, Jornal do Brasil

RIO - O tempo, dizia Antonio Vieira, tudo cura, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba .

Sabemos, no entanto, que a memória vence o tempo. Como nos ensinou Proust, a memória é o antitempo, o remédio para as fissuras do tempo, e só na memória palpita uma possível imortalidade. Parafraseando Michelet, podemos dizer que memória é ressurreição. E acrescento que país sem memória está morto e não sabe.

Pois há 40 anos, o ministro Magalhães Pinto, então titular do Ministério de Relações Exteriores (Itamaraty) me convidou para ser adido cultural do Brasil em Londres. Eu acabara de escrever meu romance africano A casa da água, que a Bloch Editores queria lançar no ano seguinte, 1970. Combinei que, nas minhas primeiras férias, viria para o lançamento. Antes de viajar, porém, telefonou-me Ozanan Coelho, então deputado federal e mais tarde governador de Minas, que fora meu colega no Colégio Brasileiro de Dona Sinhá, em Ubá, para me dizer que um empresário local desejava oferecer-me um jantar de despedida na minha terra natal.

Disse-me quem era. José Alencar, dono de uma fábrica de camisas e dos mais ativos membros da indústria ubaense. Deu-me detalhes. Alencar fora o 12º filho de uma família de 15, de que apenas os três primeiros fizeram cursos completos, formando-se em direito. Os outros haviam feito o primário e o secundário. Completou que Alencar fazia questão de me oferecer esse jantar de despedida e que levasse comigo quem eu quisesse do Rio de Janeiro. Resolvi que, além de mim e de Zora, iria meu padrinho de casamento, o escritor José Condé. De Belo Horizonte foi Vivalde Moreira, presidente da Academia Mineira de Letras, e de Ubá compareceram escritores e professores da terra, que mais tarde fundariam a Academia Ubaense de Letras. O jantar foi um sucesso, com notícias em jornais de Ubá e de Belo Horizonte, e Alencar me presenteou com perto de 10 camisas de sua fábrica.

Creio que cinco anos depois, recebi em Londres a visita de Alencar. Perguntei: Como vai a fábrica de camisas? Resposta: Fábrica de camisas? Agora eu tenho várias fábricas de tecidos, em Belo Horizonte, em São Paulo e no Nordeste. Vim a Londres porque desejo comprar máquinas na Escócia. Como não domino o inglês, gostaria que você me indicasse alguém da Embaixada para, como intérprete, me ajudar na Escócia . Foi assim que a funcionária Regina o acompanhou. Na volta, perguntei: Tudo bem? Resposta: A máquina que imaginei não existe, mas eles dizem que podem seguir a minha ideia e fazê-la. Paguei a metade do custo, e dentro de alguns meses a máquina estará no Brasil .

Anos depois vim ao Brasil em férias e fui visitá-lo em Belo Horizonte, onde Alencar já tinha um prédio de 12 andares e resolvera ser candidato ao Senado. Foi eleito, e quando Lula precisou de um vice mineiro, foi a Belo Horizonte convidá-lo.

No centenário do nascimento de Ary Barroso, em 2003, fui escolhido para presidente da comissão dos festejos da comemoração à data e resolvi escrever um livro, Ary Barroso, história de uma paixão. Fui a José Alencar e pedi que aceitasse escrever o prefácio de meu livro, o que ele fez, e muito bem.

Agora, na sua luta contra uma doença mortal, estamos todos acompanhando seu modo de agir, com sua presença permanente nos problemas do país, dando-nos um raro exemplo de vida e de força moral. Muito obrigado, meu querido Alencar.

* Membro da Academia Brasileira de Letras, vice-presidente do Pen Club Internacional e doutor Honoris Causa, da Fagoc (MG) e da Universidade Vasile Goldis, de Arad,

na Romênia