Um livro sem padrinhos e sem molde. Assim Emília Freitas (1855-1908) definiu seu "A Rainha do Ignoto", de 1899, em uma mensagem ao leitor no início do texto. Hoje, a obra ainda surpreende pela forma progressista como a narrativa fantástica trata da situação da mulher na sociedade.
Cerca de 40 anos antes da primeira aparição da Mulher-Maravilha nos quadrinhos, Freitas contava uma história na qual um grupo de mulheres vivia em uma sociedade utópica totalmente feminina.
As mulheres dessa comunidade fazem tudo e em nada dependem dos homens. Elas entendem de ciência, de medicina e de engenharia, e são dotadas de poderes especiais, que usam para ajudar outras mulheres oprimidas por doenças ou pela sociedade.
Na liderança do grupo está a figura misteriosa da Rainha do Ignoto, ou a Funesta, como é conhecida popularmente entre os habitantes de Passagem das Pedras, que seria o antigo nome da cidade de Jaguaruana, localizada nas proximidades do rio Jaguaribe, no Ceará.
A cidade também é o local do nascimento de Freitas. Aos 14 anos de idade, após a morte do pai, a jovem se mudou para a capital Fortaleza, onde estudou e frequentou círculos de intelectuais.
Adulta, trabalhou como professora e colaborou com jornais como "O Cearense" e "Libertador". Nesses veículos ela publicou alguns de seus primeiros poemas. Foi ainda membro da Sociedade das Cearenses Libertadoras, de caráter abolicionista.
"No seu tempo, ela foi uma pessoa influente pela participação que tinha na vida cultural da cidade, na imprensa e também pelo pensamento de vanguarda. Algumas mulheres até pensavam como ela, mas isso era raro", diz Constância Lima Duarte, professora de literatura brasileira da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Em "A Rainha do Ignoto", Freitas parece viver seu próprio sonho de liberdade para as mulheres. A escritora contrapõe as jovens da cidade, que desejam o casamento e são levadas pelos anseios reservados para elas pela sociedade, às paladinas do nevoeiro, independentes e donas de suas próprias vontades.
No mundo real as mulheres ainda não entravam nas universidades, mas, na fantasia, Freitas tira essas restrições e imagina as mulheres executando qualquer papel que quisessem dentro de uma comunidade.
De acordo com Duarte, que assina a apresentação de uma nova edição de "A Rainha do Ignoto", lançada no fim de 2019 pela editora 106, Emília Freitas é apenas mais um exemplo dentre as escritoras do século 19 que tiveram destaque enquanto vivas, mas que caíram no esquecimento após a morte.
"Hoje, quando fazemos pesquisas, nos surpreendemos com as mulheres que ousaram ser diferentes. Elas tiveram influência no seu tempo, mas foram esquecidas e não foram reeditadas", afirma.
Para Duarte, essas escritoras foram vítimas de um corporativismo masculino. "Os homens dominavam as instâncias de poder na imprensa e nas livrarias", diz.
No caso de Emília Freitas, a professora afirma acreditar que pesou também o fato de sua obra ter sido publicada no Ceará, mas não no Rio de Janeiro, centro cultural do país naquele período.
O resgate da obra da escritora, portanto, reacende a história intelectual da mulher brasileira, conta Duarte, e faz justiça a uma das fundadoras do gênero fantástico na literatura nacional.
Com a publicação de "A Rainha do Ignoto", Freitas mostrou que o mundo pode ser diferente e, como outras intelectuais de seu tempo, divulgou suas reflexões sobre a função e as competências das mulheres.
"Toda escritora do século 19 que saiu da mesmice e do papel acanhado a que estavam destinadas foram feministas. Era o feminismo possível naquela época" conclui Duarte. (Everton Lopes Batista/FolhaPressSNG)