CADERNOB

Do Seringal para São Paulo

No dia 15 de abril, a Almeida & Dale Galeria de Arte lançará a primeira monografia de Hélio Melo, com textos de Jacopo Crivelli Visconti (curador da mostra homônima), Tony Gross, Lisette Lagnado e Flavia Bularmarqui. O luxuoso design é de Raul Loureiro e as fotografias de Sergio Guerini

Por CHARLES COSAC

Publicado em 13/04/2023 às 10:07

Alterado em 13/04/2023 às 14:52

Transformação da seringueira, 1997 Sergio Guerini

Até dia 20 de maio, a Almeida & Dale Galeria de Arte apresenta a exposição Hélio Melo, e no dia 15 de abril lança monografia homônima. A curadoria e autoria do livro são de Jacopo Crivelli Visconti, curador da 34a Bienal de São Paulo (2021).

Hélio Melo foi um dos três pintores que afloraram em meio aos tantos ciclos da borracha no Amazonas. Os outros dois são Chico da Silva e Paulo Sampaio. Os três são contemporâneos, nasceram no primeiro quartel do século XX e faleceram na passagem para o século XXI.

Hélio Holanda Melo nasceu, em 1926, na Vila de Floriano Peixoto, no município Boca do Acre, no estado do Amazonas – embora seja considerado um pintor acreano. Vive até os 33 anos nessa região, como seringueiro, como seu pai. Após o falecimento de sua mãe, no fim da década de 1950, o futuro artista parte para Rio Branco, onde, em 1978, participa de sua primeira exposição coletiva, no Departamento de Atividades Culturais (DAC).

Autodidata, iniciou o desenho a lápis aos 8 anos, mas são desconhecidas as condições nas quais ele veio a desenvolver sua obra até sua chegada à capital. No tempo que passou nos seringais, aprendeu a feitura de pigmentos naturais; fato esse que talvez tenha conferido à obra do artista uma imperiosa homogeneidade tonal, com contrastes muito tênues.

Hélio Melo teve uma vida economicamente instável. Para sobreviver, trabalhou não somente como seringueiro, mas, igualmente, como catraieiro, barbeiro e vigia. Concomitantemente às atividades de subsistência, foi compositor, músico, escritor e pintor.

 

Os passos de um artista

Antes de se tornar esse grande artista de reconhecimento nacional e internacional, aclamado pela crítica, pelos estudantes, pelos amantes das artes visuais e seus pares, e, naturalmente, pelo mercado de arte, Hélio Melo já desde 1978 tinha presença marcante nas galerias e museus do Acre, além de ter feito duas individuais no Rio de Janeiro, no SESC Galeria de Arte da Tijuca e na Galeria Sérgio Milliet da Funarte. Mas foi na 27a Bienal de São Paulo, em 2006, com curadoria de Lisette Lagnado, que o trabalho do artista se consolidou no mercado internacional.

Em 2014, na exposição Pororoca, realizada no Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), o artista foi referenciado, pelo paradoxo de sua arte, nas palavras do historiador Paulo Herkenhoff: “O desafio acolhido por Hélio Melo foi pensar o arcaísmo e, simultaneamente, com ferramentas vernaculares, ser contemporâneo de seu tempo”. E, num olhar mais próximo, o teórico se pergunta (parafraseando o escultor Sergio Camargo, amigo e incentivador do artista, no folder de sua mostra na Sergio Milliet em 1981): “[era o] caso de simbiose estética com a mata em que viveu?”

De fato, vendo as obras de Hélio Melo, noto que ele está representado na imagética de sua obra, tão presentemente quanto o homem com cabeça de burro sentado em uma cadeira de balanço a olhar homens brancos trabalhando. Seu próprio repertório imagético está impregnado de seu eu e de sua vida na floresta amazônica. Pelo menos é o que se depreende dos registros escritos e pictóricos do cotidiano, de suas impressões e afetos frutos de anos imerso na cultura da borracha. E a selva lhe bastou. Não vemos um trabalho seu que remeta a outros sítios onde tenha vivido, como em Goiânia, que foi onde faleceu, em 2001.

 

Macaque in the trees
O entardecer I, 1985 (Foto: Reprodução)

 

Hélio Melo pinta a densidade da floresta, o que acontece nela e o que emana dela. A um dado momento (1994-96), ele igualmente edita e publica cartilhas ilustradas com fins paradidáticos (também presentes na mostra), que podem ser vistas como uma extensão verbal de sua obra pictórica.

Em desenhos, manuscritos e partes datilografadas evidenciam-se suas origens, a fase seringalista, ele menino, o folclore da mata. E o desmatamento. Tocos e troncos sendo carregados. A vida que se esvai; em meio à folhagem encorpada, a presença humana quase imperceptível, camuflada.

Os habitantes da floresta, que são revisitados nas cartilhas de Melo, fazem parte de sua simbiose íntima. A presença indígena está, em suas telas, incidentalmente presente nos cortes verticais que faz nos troncos das árvores, que se assemelham à padronagem herdada desse povo. Seu repertório é, predominantemente, de homens e mulheres brancos, nordestinos flagelados, fugidos de duas grandes secas no nordeste do país, e que migraram para o Amazonas em busca de estabilidade nos seringais – e que para lá foram a convite. Hélio é filho de um casal desses migrantes.

Vislumbram-se homens, mulheres, crianças, indígenas, animais, na mata secreta de Hélio Melo, mas são sobretudo as figuras antropozoomórficas que predominam, e que lhe conferem traços explicitamente surrealistas – como o cavalo sobre o tronco frágil de uma árvore sobre o qual recosta, calmamente, uma escada; ou o homem com cabeça de burro sentado em uma cadeira de balanço a olhar homens brancos trabalhando; ou a fabulosa obra de um boi cujas patas traseiras se fundem a um tronco de uma espessa árvore. É surpreendente o poder que o artista exerce sobre a natureza ao manipular troncos e galhos de árvores, a sugestão de trilhas aludindo a mapas, sendas feéricas. Seriam em especial, mas não exclusivamente, estas obras de Hélio Melo que dialogam com as duas fases do Surrealismo, propriamente dito.

Certamente não reside neste fato a exuberância e a relevância da obra de Melo. O Surrealismo foi estabelecido em 1924, dois anos antes do nascimento do artista. Não há influência, mas uma profunda afinidade. Os postulados de André Breton estão na obra pictórica de Melo, que enriqueceu à larga o próprio movimento.

A despeito de sua paleta, aparentemente monocromática, evitar contrastes bruscos, Melo é um exímio colorista. Seus tons telúricos, sensíveis à cada mudança da luz do dia, da alvorada ao entardecer, têm o poder de nos inebriar.

A chama de um incêndio não ocorrido, mesmo que na contraluz, clareia e esclarece o que Herkenhoff classifica como “a mais detalhada representação na arte do cotidiano dos seringais”.C.C.
 


Hélio Melo
Curadoria: Jacopo Crivelli Visconti

Visitação:
De 24/03 a 20/05, de 2a a 6a feira, das 10h às 18h. Sábado, das 11h às 16h

Lançamento do livro:
Dia 15 de abril

Almeida & Dale Galeria de Arte
Rua Caconde, 152 - Jd. Paulista
Tel.: 11 3882-7120

www.almeidadale.com.br


Macaque in the trees
Festa no seringal, 1993 (Foto: Reprodução)

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