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'Saudades dos meus botequins e outras crônicas de rua', novo livro de Luis Pimentel

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Por CADERNO B
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Publicado em 07/04/2023 às 14:26

Alterado em 07/04/2023 às 14:26

Capa do livro Reprodução

A Editora Patuá (SP) está lançando campanha de pré-vendas do livro "Saudades dos meus botequins e outras crônicas de rua", mais novo volume reunindo crônicas do jornalista, compositor e escritor Luís Pimentel. O autor, que trabalhou em inúmeras redações de jornais e revistas (Ultima Hora, Jornal do Brasil, O Dia, Revista Bundas, Opasquim21...) e publicou crônicas semanais em todos esses veículos, tem obras literárias publicadas em variados gêneros (crônicas, contos, romances, poesia, infantojuvenil, música e teatro), por inúmeras editoras.

Para quem tiver interesse, a editora recebe encomendas antecipadas do livro por este link.

 

Saudades dos meus botequins

Luís Pimentel


No Buteco do Jisus, em Botafogo, eu perguntava (só de sacanagem, porque o cardápio era sempre o mesmo):

“Alípio, o que tem hoje?”

“Você escolhe. Bife ou frango. Arroz e feijão acompanha. Pode ser com ligume ou com virdura.”

“O que é o legume, Alípio?”

“Ligume é ligume, oxente: batata, chuchu e cenoura.”

“E a verdura?”

“Virdura é virdura: alface, tumate e cibola.”

“Pode vir também um ovo?”

“Pode. Mas aí é fora à parte...”


***


Que nem no samba que compus com Paulinho do Cavaco, “Saudades dos meus botequins”, tinha "um gato dormindo em cima da janela e no alto São Jorge matando um dragão". Era um singelo e legítimo boteco no Catumbi.
Eu enfrentava os dias de nordestino tentando a vida no Rio, espremido em quartinho alugado na Heitor Carrilho. A caminho de casa, no fim do dia, parava ali pruma gelada e para apreciar a elegância de uma frequentadora histórica: sempre sozinha, cigarro no bico e garrafas em cima da mesa. Devia ter uns cinquenta anos, era bonita e silenciosa. Lá pras tantas pagava a conta, fechava a bolsa, arrumava os cabelos com as mãos e sumia pelas ruelas do bairro. Ninguém sabia ao certo onde morava.

Tempos depois, no meu inventário de ausências, passei por ali, curioso. O boteco se acabara, a cliente misteriosa provavelmente também. Hoje fiz um brinde sozinho, em homenagem a ela e aos cenários e personagens que a cidade vai vertiginosamente enterrando.


***


Diz um verso genial de Aldir Blanc (pleonasmo!), musicado por João Bosco: "Pistola em butiquim não dá bom carma / Melhor trocar o berro pela Brahma".

Pois o sujeito chegou no Boteco do Bira, na Correa Vasquez (Estácio) e estacionou ruidosamente o trezoitão na mesa, pediu uma batida da casa e grunhiu:

“Vou matar!”

Covarde desde menino, fui logo pedindo a conta pra bater em retirada, quando o Bira me acalmou:

“Relaxa. Ele diz isso toda vez que briga com o namorado.”

Assustei-me, pois naqueles tempos não era tão comum assim:

“Namorado?!”

“Da mulher dele.”


***


Essa o Luiz Guimarães de Castro botou num filme dele, o curta “O carnaval e os desenganos”:

O folião chegou no bar Bip-Bip, no finzinho do Carnaval, e puxou uma cadeira. Despejou os cotovelos sobre a mesa e grunhiu:

“Uma cerveja, estupidamente gelada.”

O saudoso Alfredo, dono do estabelecimento, grunhiu mais alto:

“Só tem quente.”

“Serve”, gemeu o folião, caindo imediatamente num pranto de derrubar encostas. Tão sincero que até o Alfredo se comoveu:

“Que foi, querido?”

Acarinhado, o sujeito abriu o verbo:

“Você sabe o que é ter um amor, meu senhor, ter loucura por uma mulher, e depois encontrar esse amor, meu senhor, nos braços de um motorista de ônibus?”

Corno em fim de festa é comum, mas plagiando Lupicínio Rodrigues, não é a toda hora que se encontra. Alfredo tentou ajudar:

“Qual é a linha?”

“Nenhuma. Piranha da pior espécie.”

“Estou falando do Ricardão. Qual é a linha que ele pilota?”

“571, Glória-Leblon, via Jóquei.”

O comerciante enxugou uma lágrima discreta:

“É duro mesmo. Se pelo menos a vadia tivesse escolhido um motorista do 572, que é via Copacabana...”


(Do livro “Saudades dos meus botequins e outras crônicas de rua”)

 

Texto de orelha do livro, por Marcelo Moutinho

“A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento”, diz João do Rio em sua célebre conferência em homenagem à inauguração da Avenida Central (hoje, Rio Branco), em 1905. Jornalista, escritor e dramaturgo, ele enxergava as vias urbanas como um ente vivo e pensante, que o cronista poderia apreender a partir da “poesia da observação”.

É precisamente o que Luís Pimentel faz neste Saudades dos meus botequins – e outras crônicas de rua. Os 34 textos reunidos no livro se espraiam pelas esquinas do Rio de Janeiro, revelando uma cidade de pequenas ternuras.

A moça que conversa ao telefone durante a viagem de metrô, a primeira visita do recém-chegado migrante ao estádio do Maracanã, histórias vividas em redações de jornal e nos balcões dos botecos. Com verve e humor, Pimentel descortina a alma carioca, abrindo espaço para homenagear alguns de seus mais legítimos representantes, como Sérgio Porto, Vinicius de Moraes, Monsueto e o querido Alfredinho do Bip Bip.

O lirismo é outra marca presente nos textos. “As mãos de minha avó tinham veias azuis em alto relevo, córregos entre couro e osso, cobras inflamadas nos desvios das rugas”, descreve no belíssimo “Mãos”, em que esboça uma síntese poética da passagem do tempo.

Nesse movimento, Pimentel descortina os afetos soterrados pela brutalidade das ruas, escava a beleza que mora em insuspeitos recantos. “Meus olhos se encantam melhor com as sombras das quais a vida também é feita”, diz ele. Eis a gênese do cronista.

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