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Fernanda faz 90

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Alguns dias após ser xingada de sórdida, Fernanda Montenegro faz 90 anos. Dias depois de ser fotografada amarrada, diante de livros empilhados, prontos para serem queimados como na Idade Média, Fernanda foi alvo de ataques vindos de baixo, de muito baixo. Ataques quase subterrâneos, se comparados ao tamanho de Fernanda e de todo o legado e de toda a obra e de toda a arte que ela já deixou, deixa e deixará em um mundo pós-obscurantista. Sim, porque Fernanda é do mundo. É da Central do Brasil que quase virou Oscar e de The Flash and Crash Days, que resultou em plateias inteiras paralisadas, vidradas, enfeitiçadas, esgotadas com tanto talento, tanto peso, tanta força que Fernanda dividiu com a filha num jogo de disputa e rivalidade entre personagens – essas sim – sórdidas. E inesquecíveis.

Fernanda faz 90 com a elegância de quem tem toda uma classe artística e não artística ao seu lado e à sua frente a disparar aplausos. Com a segurança de quem pisou nos palcos durante sete décadas. Com a altivez de quem atuou em mais de oitenta trabalhos artísticos, entre filmes e peças teatrais. Fernanda faz 90 com um livro de memórias, um filme representante do Brasil no próximo Oscar e uma estreia nos cinemas marcada para janeiro de 2020. Fernanda Montenegro é uma mulher de passado, presente e futuro. Aos 90 anos.

Meu lado jornalístico não me deixa poetizar muito. Meu lado jornalístico clama por bater nas teclas do computador novamente o episódio grotesco em que Fernanda foi atacada. Por – eles sim, sem trocadilhos por favor – sórdidos e tão desprezíveis de dar pena. Aqueles que trazem a sordidez não nos palcos, com talento imensurável como Fernanda com a filha, mas na vida com a mediocridade dos tolos e dos doentes. Mas nada disso importa porque Fernanda faz 90. Com “Prólogo, ato, epílogo: Memórias”. O livro. Aos 90.

E com fotos nas capas de revistas, jornais e portais. Fotos que adentram as primeiras páginas como os passos de Fernanda adentram os palcos. E as telas. E o cenário político. Fernanda não se calou diante do desmonte da cultura brasileira. Fernanda falou, criticou. Argumentou. Com lucidez ao dizer que o atual governo vê teatro como coisa do demônio. A mulher que interpretou de Nelson Rodrigues à sensível Dora, de Central do Brasil, chega aos 90 clareando o obscurantismo que se estendeu sobre o país. Chega aos 90 a fazer e a falar cultura. A trazer luz ao cenário sombrio que colocaram no ato atual do teatro Brasil. E a luz de Fernanda é sempre frontal, como ela gosta de orientar durante as suas entrevistas. E luz frontal mostra tudo, clareia diretamente. Obrigada por clarear a nossa arte em meio às cinzas dos livros queimados, Fernanda. Obrigada por Dora, Romana, Charlô, Fedra, Bia Falcão. Obrigada por Simone de Beauvoir. Obrigada por Fernanda. Por 90 anos de Fernanda Montenegro.

E aos desprezíveis... o desprezo.

* jornalista, mestranda em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo e integrante do LAPSO – Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social da USP