CADERNO B

Em nome do pai

Em entrevista exclusiva ao JORNAL DO BRASIL, João Cândido Portinari, filho único do famoso pintor, conta sobre o Projeto Portinari, que tem a importante missão de administrar e zelar pela grande obra do autor de 'Retirantes'

Por CAL GOMES

Publicado em 26/11/2025 às 23:38

Alterado em 27/11/2025 às 17:22

Os Portinaris, pai e filho, em um click de 2019 Foto: divulgação

Em um início de tarde ensolarado de um dia qualquer, de algum ano da década de 1950, o adolescente João Candido, depois de alguns rápidos mergulhos e de surfar "jacarés" nas águas mornas da praia do Leme, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, volta para casa, localizada bem em ali perto. Ao entrar no confortável apartamento da Avenida Atlântica, como de costume, depara-se com várias pessoas reunidas conversando na sala durante um dos muitos almoços oferecidos pelos pais, Maria Victoria e Candido Portinari. Naquele ambiente animado, está presente a mais pura nata cultural e intelectual brasileira – o crème de la crème – que, naquela época, porém, pouco o interessava.

Em seguida, seus olhos avistam na varanda um homem sentado dedilhando um instrumento musical. Aflito, preocupado, João chama Maria Victoria e reclama: "Mãe, aquele homem vai desafinar o meu violão". E ela rapidamente o adverte: "Fique quieto, menino. Aquele ali é o Villa Lobos".

Essas reuniões festivas e cheias de personagens mitológicos da história nacional em sua casa permaneceram durante alguns anos no cotidiano do garoto João Candido Portinari, filho único do famoso pintor, até ele completar 18 anos e "voar do ninho" para bem longe, para estudar em um colégio na França, onde cursou matemática durante dois anos. Mais tarde, depois de se formar em engenharia de telecomunicações, em Paris, partiu para os EUA, onde obteve o PHD em matemática aplicada à física; para, pouco tempo depois, já sem a presença do pai, falecido no início da década de 1960, retornar ao Brasil após receber um convite para ajudar a criar o departamento de matemática da PUC-Rio em 1967, onde permaneceu por 13 anos, até fundar o Projeto Portinari, iniciando assim a importante missão de administrar e zelar pela obra do pai.

Incansável na proteção e divulgação da obra e da imagem do magnífico Candido Portinari, reconhecido como o maior pintor brasileiro de todos os tempos, o carioca João Candido Portinari reservou um tempo de sua intensa e extensa agenda, nos primeiros dias de novembro, para conversar com o JORNAL DO BRASIL e falar da sua infância e juventude no Rio de Janeiro, do seu importante trabalho à frente do Projeto Portinari e, claro, do seu pai, Candido Portinari.

 


Pai e filho brincando na praia em 1939 Foto: álbum de família

 

JORNAL DO BRASIL: Na sua infância e adolescência, nos anos de 1940 e 1950, sua casa vivia sendo visitada e frequentada por inúmeros artistas e intelectuais, amigos de seus pais. Como foi conviver rotineiramente com todas aquelas figuras importantes da história do país?

João Candido Portinari: A casa de meus pais, naqueles anos, não era apenas um lar; era um laboratório cultural informal. Convivíamos com figuras mitológicas como Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Drummond, Niemeyer, Villa-Lobos, e tantos outros. A grandeza dessas figuras era eclipsada pela simplicidade e pela intensidade de seu convívio. O que aprendi não foi tanto sobre a arte, mas sobre a ética da arte: a paixão, a discussão incessante e, acima de tudo, o profundo compromisso social que todos eles compartilhavam. Era uma lição de dignidade humana vivida no cotidiano.

 

Quais as lembranças que o senhor tem daquele Rio de Janeiro da sua juventude, frequentando as praias do Leme, do Arpoador, e as casas noturnas de Copacabana?

O Rio da minha juventude era de uma poesia efervescente. Lembro-me da beleza da nossa "Princesinha do Mar", a Copacabana onde eu era ponta esquerda do Copaleme, um dos mais importantes times de praia da época, "pegava jacaré" (ainda não se dizia "Surf", e ainda não havia pranchas), e do mistério sensual das casas noturnas de Copacabana, como o "Little Club", no Beco das Garrafas, onde eu me encantava com Tito Madi, Helen de Lima e Ribamar. Era um Rio de Janeiro onde a alta cultura e a vida popular se misturavam com fluidez – uma síntese que, curiosamente, é o espelho da pintura de meu pai. As praias e a música eram o contraponto lírico perfeito para a seriedade dos estudos e do trabalho.

 

O senhor se interessou pela música quando jovem, principalmente praticando violão. Chegou, em algum momento, a pensar em seguir os passos do seu pai como pintor e artista plástico antes de fazer engenharia?

É verdade. A música foi uma paixão juvenil. Eu tocava violão e havia ali uma inclinação natural para o ritmo e a harmonia. Comecei a aprender com uma figura mítica da MPB, o Josué de Barros, do grupo "Os Oito Batutas". Meu avô materno era um dançarino do Cassino da Urca que teve um sucesso internacional dançando o Maxixe com sua parceira Gaby. Foi ele quem levou o grupo para Paris. Ele foi também quem descobriu e lançou Carmen Miranda... No entanto, seguir os passos de meu pai como pintor nunca foi uma opção para mim. Eu vi o preço que ele pagava pela arte: a luta, a dor e o sacrifício. Eu sabia que a obra dele já bastava. Minha vocação era outra, mas, ainda assim, ligada à criação. Eu precisava de algo que me trouxesse ordem e método, e encontrei isso na matemática. No fim, ela foi a ferramenta que me permitiu, anos depois, resgatar e organizar o legado dele. A arte de Portinari me levou à ciência para que a ciência pudesse servir à arte.

 

Em 2026, os famosos painéis de Portinari, “Guerra e Paz”, pintados entre 1952 e 1956, em exposição fixa na ONU, em suas limitadas jornadas itinerantes, serão homenageados e expostos na China. Pode nos dar detalhes sobre como surgiu essa ideia do projeto?

Esta é a grande missão do Projeto Portinari. A exposição “Portinari: Brasil Universal” é um projeto estratégico que levará cerca de 75 obras ao Museu Nacional da China em 2026, Ano do Brasil na China, conforme acordado entre os presidentes Xi Jinping e Lula. A exposição foi concebida para apresentar Portinari não como um pintor regional, mas como um humanista de projeção global. Nossa curadoria atual tem uma tese muito especial: usamos as obras que o próprio Portinari escolheu para suas grandes exposições internacionais (MoMA 1940, Charpentier 1946 e Milano 1963) como o crivo de seleção. O curador da exposição na China é, portanto, em grande parte, o próprio Portinari. A mostra irá focar na dualidade filosófica (o lírico da Infância versus o trágico das Retirantes) e culminará na parte imersiva, com a projeção monumental de “Guerra e Paz”, reforçando a mensagem de que a cultura brasileira é uma arma pela paz.

 

Na PUC-Rio, o senhor coordena o Projeto Portinari. Poderia explicar como ele funciona e qual é o seu propósito principal?

O Projeto Portinari é a minha Alma Mater e funciona como um centro de pesquisa, documentação e democratização do legado de Portinari. Nosso propósito principal é resgatar a totalidade da obra e da vida do artista (mais de 5 mil obras) e colocá-las a serviço da educação, da cultura, e da democracia. Funcionamos com um método rigoroso, utilizando a ciência da computação (engenharia de sistemas e informática) para catalogar e documentar as 5.400 obras e os 30 mil documentos, e criar o Catálogo Raisonné de Portinari, publicado a partir de uma das mais complexas e estruturadas bases de dados de hoje, o que foi reconhecido pelo famoso Google Arts and Culture Program, que nos colocou em seu site ao lado dos grandes museus do mundo. Nosso trabalho é a materialização de duas palavras que Antonio Callado, biógrafo de Portinari, escolheu para caracterizar o nosso trabalho: amor e técnica.

 


João Candido orgulhoso com Projeto Portinari Foto: divulgação

 

E como funciona toda a estrutura para catalogar, pesquisar, proteger as obras de Portinari que estão sendo localizadas e as que ainda não foram encontradas?

A espinha dorsal de todo o Projeto é a nossa base de dados, que foi pioneira no Brasil, criada por nossos colegas do Departamento de Informática da PUC, especialmente os professores Daniel Menascé e Daniel Schwabe e, posteriormente, Daniel de Sousa e Rafael Pereira. Quando localizamos uma obra (cujo acervo está 95% disperso em coleções privadas), a primeira etapa é o FCO: fazemos a ficha catalográfica com todas as suas informações técnicas e históricas, a documentação fotográfica e o registro de sua localização. Essa estrutura permite proteger as obras da invisibilidade e da dispersão, garantindo que o acervo de Portinari seja um patrimônio público e rastreável, mesmo estando em mãos privadas. É um trabalho incessante de pesquisa e dedicação.

 

O Projeto Portinari organizou atividades que conectam a obra do pintor com a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a COP 30, que foi realizada no Brasil. Como o senhor analisa essa participação da obra do artista, da sua imagem com o evento e como Portinari se relacionava com as questões ligadas à natureza, ao meio ambiente, e utilizava a sua arte nesses temas?

Temos feito um trabalho fundamental ao ligar a obra de Portinari a eventos contemporâneos como a COP 30. Portinari se relacionava com a natureza não de forma puramente paisagística, mas como um tema de dignidade e sobrevivência. Sua preocupação com os povos originários, os bichos e a floresta se reflete de forma permanente em sua obra. Em sua arte, a terra é a fonte de vida (“O Lavrador de Café”), mas também a fonte de dor (“Retirantes”). Ele retratou o equilíbrio frágil entre a flora e fauna brasileiras (obras que levaremos à China) e o drama da miséria que força o homem a deixar sua terra. Sua mensagem é que não há beleza sem justiça e que a preservação do ambiente é indissociável da preservação humana. Sua obra "Retirante Morrendo" é testemunha dessa dedicação ao ecossistema ser humano/meio ambiente.

 

Na invasão golpista de 8 de janeiro de 2023, em Brasília, assistimos a inúmeras obras de artes sendo destruídas e danificadas, com um prejuízo material e emocional enorme. Nenhum quadro de Portinari, dos que fazem parte do acervo do Itamaraty, no Ministério das Relações Exteriores, sofreu como o de Di Cavalcanti, “Mulatas”, que passou por um longo trabalho de restauração. Quais foram e ainda são os seus sentimentos por tudo aquilo que ocorreu?

É um evento que nos enche de profundo pesar e indignação. A destruição de obras de arte é um ato que transcende o prejuízo material; é um ataque à memória, à identidade e à inteligência do País. É um alívio imenso saber que as obras de Portinari no Itamaraty não sofreram danos graves como a obra “Mulatas” de Di Cavalcanti. Meu sentimento, e o do Projeto, é de profunda tristeza pela vulnerabilidade da nossa cultura. A arte não é apenas decoração; ela é o documento mais sensível da nação. O que ocorreu apenas reforça a nossa missão de lutar pela preservação, pois a cultura e a arte são sempre os primeiros alvos quando a democracia e a razão são atacadas. Quando Portinari viu seu visto de entrada nos EUA negado, tirando-lhe o direito de participar da Conferência Cultural e Científica da Paz Mundial em Nova York, atendendo ao convite do Conselho Mundial dos Partidários da Paz, ele comentou: "no tempo de Roosevelt eu fui convidado a pintar aqueles quatro grandes afrescos para a Biblioteca do Congresso em Washington. Hoje, o Sr. Truman anda dizendo que se fala demais na palavra ‘Democracia’. Ora, não estou de acordo com o Sr. Truman. Ao contrário, acho que em vez de dizer ‘bom dia’, deveríamos dizer ‘democracia’. Nunca é demais lembrar que existe uma palavra com este nome. Sobretudo nos países onde ela está sendo traída o tempo todo".

 


Portinari acompanhando o pequeno João testando pincéis e tintas em 1945 Foto: álbum de família

 

O Senhor poderia fazer uma comparação social, política e cultural daquele Brasil que tanto inspirou Portinari, com o de hoje?

O Brasil de hoje é mais complexo, mais digital e, em muitos aspectos, mais polarizado que o Brasil de Portinari. Ele pintou o Brasil da industrialização incipiente, da grande desigualdade e da busca por uma identidade moderna. A diferença crucial hoje é o poder da informação. As mazelas sociais que ele expôs (“Retirantes”) continuam presentes, mas hoje não são invisíveis. Politicamente, continuamos na luta pela democracia plena. Culturalmente, o Brasil de hoje é muito mais rico e diverso do que ele pintou, mas a busca por justiça e dignidade – o tema central da obra de Portinari – permanece a nossa mais urgente inspiração. Ele disse: "O Homem merece uma existência mais digna. Minha arma é a pintura".

 

O Senhor tem acompanhado a nova geração de pintores e artistas plásticos brasileiros e o que eles têm produzido?

Sim, acompanho com grande interesse. A nova geração está mais engajada nas pautas de identidade, gênero e sustentabilidade, usando mídias que Portinari nunca sonharia (arte digital, instalações imersivas, como a do genial Marcello Dantas, nosso parceiro de toda a vida, curador desta área na exposição na China). Eles são igualmente passionais em sua busca por um Brasil mais justo, o que mostra que a chama ética acesa por Portinari continua viva. Eles são os novos cronistas da nossa realidade, usando novas linguagens para a mesma luta humana.

 

O senhor poderia citar cinco obras de Portinari de sua preferência?

É impossível escolher cinco sem sentir que estou traindo as outras 4.995! É como perguntar a uma mãe qual o filho que ela prefere... Mas, se devo fazê-lo, escolho aquelas que, para mim, melhor sintetizam a dialética da sua obra: “Mestiço” (1934), a síntese da identidade brasileira, um marco; “O Lavrador de Café” (1939), a dignidade do trabalho; “Menino com Pião” (1947), a ternura e poesia da infância; “Retirantes” (1944), a fúria e o drama social; e “Guerra e Paz” (1956), o gesto de humanidade e a utopia da paz.

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