ARTIGOS

Enfim, uma boa notícia

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Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 21/12/2025 às 09:22

Alterado em 21/12/2025 às 09:22

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Ainda bem que temos pelo menos uma boa notícia neste Natal. E a devemos, mais uma vez, ao Poder Judiciário, especificamente ao Superior Tribunal de Justiça, na esteira de outra, anterior, do Supremo Tribunal Federal. Decisão a nos beneficiar a todos, de conformidade com um dos mais importantes direitos constitucionais, o direito à saúde para todos.

Numa palavra, o Superior Tribunal de Justiça confirmou o prazo máximo de vigência de uma patente farmacêutica no Brasil a 20 anos. As empresas farmacêuticas, valendo-se dos escritórios de advocacia de propriedade intelectual brasileiros e internacionais pretendiam esticar o prazo para 30 anos. Melhor que isto, só a farra do bode.

Meus leitores habituais sabem que esta anomalia do monopólio abusivo deriva do Acordo TRIPS, uma das pérolas - em todos o sentidos - da arrogância dos países industrializados no comércio internacional. TRIPS, dentre outras alquimias, acabou com a flexibilidade dos países em regular os mecanismos de proteção do consumidor na legislação nacional.

Antes de TRIPS, o Brasil seguia os regulamentos estabelecidos pela Convenção de Paris, criada em 1888 e periodicamente revista. O Brasil a ela aderiu desde 1888, isto é, desde sua criação - a assinatura brasileira foi de Dom Pedro II - até a revisão de 1925, chamada Revisão da Haia.

Nos anos 60, na sequência do desmonte universal do colonialismo, houve a ascensão de organizações internacionais ligadas à ONU, dentre as quais a mais ativa foi a Conferência das Nações Unidas de 1964, que se tornou um órgão permanente com a sigla UNCTAD. Iniciava-se aí, além do combate ao colonialismo, a tentativa de reduzir as assimetrias internacionais, muitas delas inerentes às regras do comércio internacional.

A UNCTAD teve seu projeto original e seu plano de ação elaborados pelo argentino Raul Prebisch, com a substancial participação do brasileiro Celso Furtado. Já na primeira Conferência em 1964, por influência dos Estados Unidos da América (Brother Sam), a delegação brasileira recebeu uma focinheira de Pit Bull, episódio que resultou na cassação do Embaixador Jaime de Azevedo Rodrigues e num inquérito administrativo repressivo a vários jovens diplomatas na época.

Antes, fora demitido do Itamaraty Antônio Houaiss, a pedido do governo salazarista. Houaiss havia cometido o crime hediondo de ajudar os diplomatas africanos a elaborar discursos contra o colonialismo das províncias ultramarinas portuguesas. Foi demitido sem dosimetria alguma. Alias, de passagem, sugiro a leitura do livro “ Missão em Portugal”, de Álvaro Lins, para bem compreender a eficiente diplomacia do “Portugal, meu avozinho”.

De qualquer forma, a criação da UNCTAD inicia o chamado diálogo Norte-Sul, logo escoimado de “comunista” ou socialista pela simples razão de chamar a atenção para os desequilíbrios no comércio internacional. Obviamente, nossas tentativas de reequilibrar o comércio internacional foram paulatinamente contidas pelos países desenvolvidos, antes de serem transformadas em subversivas e inaceitáveis alterações da ordem internacional. Fora pequenas alterações marginais, o comércio internacional se tornou mais protecionista e retrógrado.

O que acabamos de assistir esta semana com a reação de boa parte da Europa ao Acordo União Europeia- Mercosul não poderia ser mais ilustrativo do protecionismo dos países desenvolvidos na área agrícola. Mas, no caso do acordo TRIPS, aprovado no pacote da Rodada Uruguai da Organização Mundial do Comércio (OMC), vai-se além do mero protecionismo e aprofunda-se a disparidade de forças na área tecnológica, com graves consequências, no caso da patentes farmacêuticas, para a saúde pública brasileira.

Em meados dos anos 60 começaram negociações no âmbito da Convenção de Paris com vistas a atrair o maior número de países em desenvolvimento para as regras universais de proteção intelectual. No pano verde do cassino negociador, havia interesses compartilhados. De um lado, os países desenvolvidos pretendiam tornar as regras de transferência de tecnologia vigentes universalmente aplicáveis, com o olho gordo nas proteções monopolistas trazidas pelas patentes. Os países em desenvolvimento, por sua vez, estavam dispostos a aderir a regras internacionais desde que elas tornassem mais flexíveis os termos de intercâmbio e aquisição de tecnologia.

Havia igualmente interesse do Escritório Internacional para a Proteção da Propriedade Intelectual (BIRP), órgão responsável pela administração da Convenção de Paris, em se tornar subsidiário das Nações Unidas, como de certa forma se tornou, e hoje se chama OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), com sede em Genebra. Estes, em suas linhas gerais, os parâmetros negociadores. Recordo ainda que na mesma ocasião na UNCTAD se negociava um Código de Conduta para as Empresas Transnacionais e um Código de conduta para Transferência de Tecnologia. Anátemas, ambos.

Apenas para lembrar o nível da transformação das regras de patentes farmacêuticas na legislação brasileira, bastaria dizer que, sob as regras da Convenção de Paris, nosso país não concedia patentes a processos farmacêuticos, mas apenas a produtos, limitava a proteção patentária a 12 anos. Porém, o mais importante: só podiam ser patenteados os produtos farmacêuticos produzidos no Brasil e era livre a importação de produtos farmacêuticos.

Hoje, depois do Acordo TRIPS, fomos obrigados a conceder patentes por 20 anos, proibiu-se a importação de medicamentos sem prévia e rígida autorização do detentor da patente, que, ainda por cima, ficou totalmente desobrigado de produzir o produto em nosso país.

A pergunta que se poderia fazer é porque o Brasil assina um acordo tão leonino? A explicação é simples. As empresas farmacêuticas e seu poderosíssimo lobby no Congresso Americano conseguiram incluir na lei 301 dos Estados Unidos um controle rígido das legislações domésticas de propriedade industrial. Por esta lei, um país pode ter uma lista de produtos que exporte para os Estados Unidos inteiramente proibida de entrar naquele país. Uma lei que teve êxito absoluto, maior até que a tarifação aloprada de Trump em nossos dias.

E por falar em Trump, é interessante notar que ele mexeu em tudo, avacalhou o Direito econômico internacional, mas nem de longe admite mexer em TRIPS. Estamos, portanto, no pior dos mundos. Há obviamente soluções que poderíamos adotar, porque somos o quinto maior consumidor de produtos farmacêuticos do mundo, e muito do superávit americano com o Brasil deriva dos royalties que anualmente pagamos por produtos farmacêuticos.

No momento, só conseguimos evitar mais uma dentada na saúde pública brasileira.

E isto graças ao Poder Judiciário. O Poder Legislativo aumentou suas não transparentes emendas parlamentares para 62 bilhões de reais anuais. Em contrapartida, reduz-se no Orçamento da União os benefícios sociais. Uma nova forma de dosimetria demencial.

Jingle Bells.

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