ARTIGOS

A mãe da vida quer viver: sobre feminicídio às vésperas do Natal

Por MARIA CLARA BINGEMER

Publicado em 11/12/2025 às 12:17

Alterado em 11/12/2025 às 12:17

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Em seu livro “Sobre a dor dos outros” (Regarding the pain of others), de 2004, a filósofa e pensadora Susan Sontag explora as raízes da guerra. E, a partir de um escrito de Virginia Woolf, reflete sobre a pergunta feita à escritora inglesa por um homem sobre a possibilidade de prevenir a guerra. Woolf responde com uma perturbadora afirmação: Os homens fazem a guerra. A maioria dos homens gosta da guerra, já que para eles há “alguma glória, alguma necessidade, alguma satisfação em lutar” que as mulheres, ou pelo menos a maioria delas não sente nem desfruta. Segundo Woolf – secundada em sua convicção por Sontag – a guerra é um jogo de homens. A máquina de matar tem um gênero, e é macho.

Nos últimos tempos, no Brasil, temos a impressão de que essa afirmação da grande pensadora se aplica à violência contra as mulheres. Têm acontecido tantos feminicídios que mulheres e homens se mobilizaram nas redes sociais, no espaço público e em todas as instancias para protestar contra esse que é um crime horrendo como todos, mas diferenciado de todos. Por quê? O feminicídio deve ser distinguido do homicídio. O último figura na lei como a morte infligida a um ser humano com os matizes vários de gravidade: culposo, doloso, triplamente qualificado etc. O feminicídio ataca e mata um ser humano que tem um gênero porque se recusa a aceitar sua identidade mais profunda: ser mulher. Melhor dizendo: recusa-se a permitir que essa que é mulher, em sua diferença, seja e viva plenamente.

Por isso as manifestações que assistimos nos últimos dias levantavam a bandeira e gritavam o refrão: queremos as mulheres vivas. O Levante Mulheres Vivas reivindicou o protesto pelos atentados feminicidas contra a vida das mulheres afirmando: Vivas.

Aqui não se trata mais das crescentes reivindicações por salário, direitos trabalhistas etc. Embora isto seja parte da questão e causa inclusa da violência, as mulheres reivindicam algo muito mais fundamental: viver. O direito a estar vivas que inclui respirar, ser livre, ter direito de ir e vir, tomar decisões por si mesma. E isso reforça ainda mais a gravidade do delito constantemente cometido e repetido contra estas cujos corpos são – pasmem – a sede da vida. Sem mulheres não há procriação, não há vida. A cadeia da vida é brutalmente interrompida por algum motivo estarrecedor em sua banalidade e futilidade: a decisão pelo fim de um relacionamento que não é aceito pelo parceiro por exemplo; a decisão de fazer um curso ou assumir um trabalho que requeira horas fora de casa; o desejo de levar adiante uma gravidez não desejada pelo companheiro.

A história das religiões nos diz que o problema é milenar, especialmente em nossa civilização ocidental. O grande psicanalista e pensador Contardo Calligaris afirma que nossa civilização está assentada sobre isso: o ódio às mulheres. E a causa que enuncia é mais impressionante ainda: porque a mulher é aquela que dialoga com o diabo e por isso, aquela que tem uma aliança com o mal. As religiões semitas previam o apedrejamento da mulher surpreendida em adultério e reconheciam toda a série de restrições a seu corpo do qual os homens piedosos deviam aproximar-se com cautela. Ali morava o pecado, que tinha potencial de contaminação. Portanto, a prudente distância e a estrita vigilância se faziam necessárias.

E, no entanto, a revelação bíblica nos diz que o Criador fez do pó da terra o ser humano isch- ischa ( macho e femea) e em suas narinas soprou seu “nefesh”, seu hálito de vida que lhes daria uma maravilhosa singularidade. E se Adão é o feito do barro, Eva é a mãe dos viventes. Em seu corpo está alojado e pulsante o mistério da vida que, ali semeada, cresce e desabrocha em extasiantes pluralidades. A narrativa do pecado original conheceu interpretações pelas quais Eva seria a primeira a ser seduzida pela serpente e aquela que não só pecou como induziu Adão ao mesmo pecado. A exegese bíblica hoje não toma esse caminho hermenêutico, reconhecendo o pecado original não como pecado sexual, tal como creem muitos, mas como a recusa do ser humano em aceitar sua condição de criatura e aspirar a ser Deus.

Essa interpretação, porém, é um elemento que colabora para que entre os mesmos humanos haja um gênero que extermina outra, que a impede de viver. Para onde irá a fonte da vida se as mulheres continuam sendo exterminadas e vivem com medo e terror do homem que têm ao lado, seja pai, tio, irmão, parente, amigo ou sobretudo companheiro, marido e parceiro?

Há mais de dois mil anos atrás um homem sofreu angustiado por não poder responder a uma questão que o atormentava José, o carpinteiro de Nazaré, constatou que Maria – a mulher que amava e de quem era noivo - esperava um filho que não era dele. A lei mosaica lhe punha nas mãos os instrumentos para o castigo e a punição mortal. Não os utilizou e pensava repudiá-la secretamente para protegê-la.

O mensageiro de Deus, no entanto o fez ir mais longe na recusa da violência contra o corpo de sua amada. Revelou-lhe em sonho não precisar temer acolher Maria como sua esposa, pois o que nela se gerava vinha do Espírito Santo. O resto é história, e história de salvação. José tomou Maria em casamento e cuidou dela e daquele menino que um dia seria sinal de salvação para o povo e para o mundo inteiro.

Que o amor e o respeito de José por usa mulher sejam hoje a inspiração para um movimento de conversão dos homens em direção ao conhecimento e ao exercício de sua identidade e de sua masculinidade. A mulher carrega em seu corpo aberto e perfurado a diferença que a faz sede da vida. É a mãe dos viventes. E ela quer viver. Não quer morrer pelo fato de ser mulher. A violência contra essa que é a morada da vida e a condição de que a vida avance e fecunde a terra não faz crescer a autoridade do macho. Mas pelo contrário desmascara sua insegurança e fragilidade que precisa matar para afirmar-se.

 

Maria Clara Bingemer é teóloga e autora de diversos livros e artigos. Entre eles, o mais recente é “Sede de Deus nos desertos contemporâneos. Aproximações teopoéticas”, SP, Recriar, 2025.

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