ARTIGOS

Gilmar, Incitatus, a toga e o silêncio

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Por IVAN NUNES FERREIRA

Publicado em 07/12/2025 às 10:03

Alterado em 07/12/2025 às 10:16

Gilmar Mendes Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

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Quando o cavalo Incitatus foi nomeado cônsul por Calígula, o Senado se calou.

Quando o juiz moderno decide que apenas uma mão pode tocar nos intocáveis, o povo se cala.

Não era um ato de humor, tampouco de loucura aleatória. Era gesto de poder. Era o triunfo da vontade imperial sobre a razão pública.

Ao colocar Incitatus, seu cavalo, entre os homens mais ilustres de Roma, Calígula não desprezava apenas o Senado: desafiava o próprio conceito de responsabilidade. Um cavalo, afinal, não vota, não discute, não critica. E era precisamente disso que o imperador precisava: silêncio submisso sob o disfarce da legalidade.

Séculos depois, sem cascos nem relinchos, a cena se repete: não no mármore do Fórum, mas sob as colunas modernas de outro templo, o do poder supremo. Um homem togado, com voz rouca e pena rápida, determina, sozinho, que somente uma figura específica pode pedir o julgamento daqueles que vestem a mesma toga que ele.

“Sim, eu determino que somente fulano pode me julgar, segundo os critérios que eu mesmo dito.”

Pobre Brasil, essa Zumbilândia.

Não se nomeia um cavalo. Mas se consagra o silêncio. E se transforma o contraditório em ameaça.

Na democracia, dizem os homens prudentes, é necessário que o poder seja vigiado, não por desconfiança pessoal, mas por reconhecimento da natureza humana, sempre inclinada à expansão de seus próprios limites.

Roma o soube tarde demais.

E o mundo grego, que amava a palavra livre, jamais cessou de advertir: quando a cidade se curva ao oráculo de um só, a justiça se converte em oráculo, não em lei.

Sócrates, em sua defesa perante os juízes de Atenas, não rogou por piedade. Pediu apenas que a cidade continuasse amando o exame, o logos, e não as sombras da autoridade. Foi, contudo, condenado.

Seu erro? Ter exigido que os detentores do poder justificassem suas verdades. Ter sugerido que a justiça não nasce da posição, mas da razão.

O que se vê, então, no gesto moderno de limitar quem pode questionar os deuses togados, é a mesma inquietante tentação do império: preservar-se não pela virtude, mas pela blindagem. Os sacerdotes da justiça passam a escrever seus próprios cânticos e proíbem outros de interpretá-los.

A tragédia não é nova. O brasileiro médio é trouxa por natureza...

Édipo, quando cegou a si mesmo, não o fez por ter visto demais, mas por não ter querido ver antes. A polis, quando se entrega ao encantamento do poder absoluto, prefere a cegueira voluntária à luz perturbadora da crítica. E aquele que ousa perguntar (como perguntava Antígona, como indagava Diógenes) torna-se ameaça à ordem estabelecida.

Mas que ordem é essa que não suporta ser interrogada?

A verdadeira ordem política não teme a palavra, pois sabe que sua força reside na aletheia, na desocultação.

A falsa ordem, ao contrário, refugia-se na autoridade inquestionável e transforma a lei em escudo; não da justiça, mas de si mesma.

Assim, quando o cavalo foi nomeado cônsul, o Senado se calou.

Quando o juiz moderno decide que apenas uma mão pode tocar nos intocáveis, o povo se cala. E o silêncio, mais uma vez, não é paz, é aviso.

Estamos avisados...

Ivan Nunes Ferreira é advogado

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