ARTIGOS

Um encontro amistoso

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Por ADHEMAR BAHADIAN

Publicado em 28/10/2025 às 14:01

Alterado em 28/10/2025 às 14:01

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Seria ridículo não registrar nosso alívio com o encontro entre Lula e Trump. Inegável a nítida redução das tensões bilaterais entre Brasil e Estados Unidos. Se fosse possível usar uma gíria futebolística, se poderia dizer que Lula conseguiu acabar com “o barata-voa” e colocou a bola no meio do campo. A imagem futebolística real que me vem à memória é a do grande Didi, o mago da folha seca, quando, na final da Copa do Mundo na Suécia, após o gol surpreendente dos donos do campo, sossegou o nervosismo da seleção ao sair com a bola debaixo do braço e, em passadas de um guerreiro Maasai, colocá-la no centro de gravidade brasileira.

Terminam aqui as metáforas futebolísticas ou não. Temos obviamente uma situação geopolítica que se revela a cada dia mais complexa. Embora as análises se multipliquem, todas elas se afunilam numa constatação infelizmente pessimista.

Estamos diante de um desses momentos históricos que no século passado nos levaram a duas guerras mundiais e a uma paz instável chamada durante anos de guerra fria.

Nos dias que correm estamos a assistir o desmoronamento das boas intenções de uma paz permanente, tal como inscrita na Carta de São Francisco, certidão de nascimento de uma ordem internacional fundamentada no Direito Internacional.

Hoje, as Nações Unidas estão profundamente paralisadas e, pior, desacreditadas e até mesmo vilipendiadas pelo chefe de governo do próprio país que muito trabalhou por seu nascimento e a abrigou numa parte nobre de seu território nacional.

Será ilusório imaginar que num horizonte previsível se possa ver um renascimento do espírito laico, gregário e solidário que marcou as negociações dos vitoriosos da Segunda Guerra Mundial, dentre os quais não se pode esquecer o Brasil, um dos signatários originais da Carta de São Francisco e aliado das forças democráticas nas batalhas na Itália contra as tropas de Hitler.

Recordo essa página histórica em parte para refrescar a memória dos que hoje indiciam a Diplomacia brasileira de ser intrometida numa geopolítica onde nada teríamos a dizer. Ao contrário, a voz do Brasil sempre esteve presente até mesmo, como sabemos todos, na Conferência de Paz, em Haia, quando Rui Barbosa defendeu vitoriosamente a igualdade soberana dos Estados, repudiando ali uma emasculação do Brasil.

Lula, portanto, retoma com idêntica proficiência os interesses brasileiros diante de uma inegável força desagregadora do sistema internacional surgido nas cinzas da Segunda Guerra Mundial. A ele, portanto, se deve louvar, antes de mais nada, a identidade de nosso povo com o destino democrático e desenvolvimentista dos povos amantes da paz, para usar uma expressão consagrada da Carta das Nações Unidas.

E é igualmente obrigatório reconhecer que na raiz do desaparecimento dos compromissos assumidos na Carta das Nações Unidas há um jogo extremamente perigoso a pretender tornar menos iguais os Estados que, de uma forma ou outra, não se conformam com o desenho assimétrico do hegemônico a fazer da geopolítica um ostensivo território autocrático.

Não há dúvida que até pela surpresa e violência dos movimentos geopolíticos de Trump e as consequências econômicas no comércio internacional nenhum país - à exceção cuidadosa da China - esquivou-se de aceitar negociar com os Estados Unidos da América.

Mas, o que me preocupa aqui é até onde será possível esticar esta corda de afogado quando as regras são conhecidas apenas pelo hegemônico e obviamente citadas por seu interesse sem dar pelotas a princípios básicos do Comércio Internacional como a cláusula da nação mais favorecida. Isto sem falar no desconhecimento arbitrário das regras de preservação do meio ambiente e a hostilidade às leis e regras dos Estados.

O que me parece cada vez mais óbvio é que os Estados Unidos da América, desde os anos 80 do século passado, foram paulatinamente desmontando as redes de proteção social erguidas ao longo de décadas de amadurecimento político em favor de um capitalismo financeiro cada vez mais inconsequente com os desajustes sociais e econômicos nos próprios países centrais e periféricos.

A esfinge trumpista redesenha o dilema do decifra-me ou devoro-te. E o transforma num jogo autoritário em que a opção é ser devorado pela força ou ser docilmente esmagado.

A pergunta, portanto, que nós devemos fazer, todos, é a mesma já dirigida a Catilina. Até quando nossa paciência poderá suportar tanto retrocesso cultural, humanístico e político? Até quando a redução do seguro-saúde, da vacinação infantil, da censura política e a abolição da liberdade acadêmica serão impostas aos povos bárbaros para que o hegemônico possa sobreviver escarnecendo da fome alheia e da mortandade?

Essas as perguntas que me afligem e para as quais não encontro resposta enquanto não se promova uma nova Bretton Woods, onde os ensinamentos que adquirimos até esta nova decadência civilizacional nos inspire a fazer desta vez uma comunidade que honre o adjetivo “humana”.

Temo que muito antes disso sejamos varridos deste planeta que cotidianamente submetemos ao nosso barbarismo argentário. No Caribe, espera-se para amanhã um tufão com ventos de 260 quilômetros por hora.

Outros virão.

Só Trump não virá a Belém do Pará.

 

Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado

 

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