ARTIGOS
Dilexi te: Francisco, Leão e os pobres
Por MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER
Publicado em 19/10/2025 às 10:35
Alterado em 19/10/2025 às 10:35
Desde que a fumaça branca anunciou, em meio ao luto e à orfandade pela morte de Francisco que a Igreja tinha um Papa a figura de Robert Prevost, que escolheu Leão XIV como nome gerou muita expectativa. As notícias do cotidiano do novo Pontífice se sucediam, mas não traziam aquele fato grande e novo que todos esperavam: um documento que nos fizesse conhecer melhor o novo sucessor de Pedro.
Leão XIV se fez esperar e mostrou claramente que seu estilo é diferente do de seu predecessor. Mais discreto, mais lento, mais prudente, não tomou qualquer iniciativa maior que represente um compromisso público e um programa de governo apressadamente. Mas agora promulgou sua exortação apostólica “Dilexi te” (eu te amei) que pode ser lida em diversas línguas para que este Papa cujo coração balança entre o norte e o sul faça conhecidas algumas das prioridades que marcarão seu pontificado.
Os que esperavam algo inteiramente novo e distanciado de Francisco devem estar bastante decepcionados. Leão XIV faz um documento sobre os pobres e reforça a opção pelos pobres que a Igreja pós conciliar, sobretudo na América Latina adotou como sua maior prioridade. Francisco a trouxe de volta à frente de seu papado. E agora Leão a retoma, mostrando sua sintonia e clara fidelidade ao caminho traçado por Francisco.
Já no parágrafo 3, Leão diz explicitamente que esse documento era um projeto de Francisco, que ele recebe como herança e se alegra de assumi-lo como seu, acrescentando algumas reflexões próprias. Na verdade, a intenção de um e de outro – Francisco e Leão – era proclamar em alto e bom som que o amor a Cristo e o amor aos pobres são um só amor e que essa ligação é indestrutível, porque é o coração mesmo do Evangelho. E acrescenta: “ Não estamos no horizonte da beneficência, mas no da Revelação: o contato com quem não tem poder nem grandeza é um modo fundamental de encontro com o Senhor da história. Nos pobres, Ele ainda tem algo a dizer-nos.” (DT 5)
O Papa segue o texto procurando explicar o que é essa opção preferencial pelos pobres, que foi tão mal compreendida por tantos há décadas. Não se trata de uma ideologia. Nem tampouco de um prêmio por serem os pobres mais virtuosos. Pelo contrário trata-se da possibilidade de uma conversão trazida pelos pobres a toda a Igreja, recordando-lhe as fontes de seu nascimento e surgimento. Fazer uma opção preferencial pelos pobres é voltar ao Evangelho, a Jesus de Nazaré e a seus ensinamentos. A renovação da Igreja só pode partir daí. Não há outro lugar desde onde possa falar ao mundo hoje. Como diz Leão XIV: “Estou convencido de que a opção preferencial pelos pobres gera uma renovação extraordinária tanto na Igreja como na sociedade, quando somos capazes de nos libertar da autorreferencialidade e conseguimos ouvir o seu clamor. “ (DT 7)
Leão XIV traça a seguir um detalhado retrato dos múltiplos rostos que a pobreza toma em nossa sociedade, recordando inclusive que as nações unidas incluíram a erradicação da pobreza como um dos objetivos do milênio. Trata-se de algo muito grave que atinge o mundo inteiro o fato de que a pobreza não haja decrescido, mas sim aumentado, mostrando claramente que a ideologia do enriquecimento e do sucesso a qualquer custo que caracteriza a sociedade hoje não significa que haja desenvolvimento humano integral. Os que ficam à margem da vida confortável de alguns poucos são cada vez mais numerosos e vivem em condições sempre mais críticas, com insegurança alimentar, situação de errância e deslocamento sem estabilidade e outras calamidades que presenciamos cada dia pela mídia e mesmo ao nosso lado.
O Papa recorda que a pobreza não é um destino e uma fatalidade. Nem uma falta de méritos que atinge os que não trabalham. Trata-se sim da consequência funesta da injustiça estrutural que gera uma sociedade de opressão e desigualdade. Nesse ponto critica lucidamente a meritocracia que funciona como um falso índice do valor e do esforço das pessoas. Apresenta igualmente todo o itinerário da Escritura, tanto da Biblia Hebraica como da Biblia cristã, onde a revelação de Deus é indissociável do clamor dos pobres por justiça. E onde a justiça feita aos pobres é o sinal da fidelidade a Deus e não aos ídolos.
Leão XIV que passou anos de sua vida junto a comunidades populares no Peru, compartilhando sua vida e dores, declara, perplexo, a certa altura da exortação: “Muitas vezes pergunto-me, quando há tanta clareza nas Sagradas Escrituras a respeito dos pobres, por que razão muitos continuam a pensar que podem deixar de prestar atenção aos pobres.” DT23
Também nos espanta essa realidade, Santo Padre. Após tanto tempo em que lemos e ouvimos a Escritura, tão clara a esse respeito, como pode ainda haver dúvidas? Além da Escritura, os Padres da Igreja dos primeiros séculos do Cristianismo são destacados no documento papal com suas reflexões claríssimas sobre o uso dos bens, a importância de não se esquecer ou descuidar dos pobres e outras práticas de caridade. O Papa enumera uma série deles, terminando com a figura de Agostinho, o santo inspirador de sua vida religiosa, afirmando que o doutor da Graça “ via no cuidado aos pobres uma prova concreta da sinceridade da fé.” DT 45
Após os Padres da Igreja é a vez dos santos. Leão XIV desfila diante dos olhos do leitor de sua exortação os rostos desses inúmeros e admiráveis homens e mulheres que marcaram a história com seu testemunho de caridade incansável para com os últimos da sociedade. Começa com Francisco e Clara de Assis, mas não falta nesse elenco nossa Santa Dulce dos pobres e o Beato Scalabrini, apóstolo dos migrantes.
Ao chegar à contemporaneidade, quando as questões sociais interpelam sistêmica e estruturalmente a prática da Igreja frente à pobreza, cita com admiração a Igreja da América Latina, que com suas conferências episcopais marcou uma posição de todo o corpo eclesial em favor dos mais pobres e disposta a entender o Evangelho como um anúncio que deve ter consequências não apenas nos indivíduos, mas nos modelos econômicos e políticos.
O Papa relembra aos cristãos que para eles os pobres são a própria carne de Cristo e por isso são prioridade inquestionável na vivência de sua fé, a qual, sem as obras de misericórdia, é morta. As teologias que surgiram no século passado e no início deste em nosso continente, a partir das conferências de Medellin, Puebla e Aparecida procuram refletir e elaborar conteúdos que alimentem as comunidades cristãs nesse permanente movimento de estar junto aos pobres vivendo com eles um projeto de libertação.
O documento menciona a injustiça ambiental sem, no entanto, estender-se sobre sua inseparabilidade da justiça social. Em compensação dedica dois longos parágrafos aos movimentos populares, tão caros ao coração de seu predecessor Francisco. Os números 80 e 81 ressaltam a importância desses protagonistas da libertação, desses poetas sociais que vivem a cada dia a esperança de encontrar caminhos comunitários para uma vida digna e plena.
Para quem muito esperou por um documento deste pontificado sem dúvida o Papa Leão trouxe uma boa surpresa. Foi de uma clareza fulgurante quanto às prioridades que nortearão seu pontificado e sobretudo reafirmou sem deixar lugar a qualquer dúvida seu compromisso de continuidade com o pontificado de Francisco. Que assim seja. Obrigada, Santo Padre.