ARTIGOS
A lista de Zuppi
Por MARIA CLARA BINGEMER
Publicado em 07/09/2025 às 10:08
Alterado em 07/09/2025 às 10:08
No último dia 14 de agosto, em Bolonha, Itália, foi lida uma lista de mais de 12 mil nomes. O leitor desta lista foi o cardeal de Bolonha, Matteo Zuppi. Nascido em 1955, em Roma, Zuppi é arcebispo de Bolonha desde 2015 e foi criado cardeal pelo Papa Francisco em 2019.
Membro do movimento leigo Comunidade de Sant´Egidio, o cardeal é igualmente membro da Conferência Episcopal italiana. Conhecido por posturas abertas e progressistas, Matteo Zuppi tem mostrado claramente sua posição pela paz, o diálogo inter-religioso e o repúdio a toda injustiça e violência. Muito próximo do Papa Francisco, foi seu enviado especial para o conflito na Ucrania, o que o levou a visitar Kiev, Moscou, Washington e Pequim.
Na ocasião do conclave que elegeria o sucessor de Francisco, Zuppi era tido como favorito. Participou da eleição que consagrou Robert Prevost como Papa Leão XIV. No dia 14 de agosto, no entanto, Zuppi assumiu uma missão especial: ler uma longa lista de nomes e fazê-la ressoar como um cântico de súplica e memória.
Ao lado de monges, religiosos e leigos, homens e mulheres, Zuppi leu ao longo de mais de sete horas os nomes de 12 mil crianças palestinas e de 16 menores de idade israelenses que foram assassinados desde o dia 7 de outubro de 2023, quando aconteceu o ataque do grupo extremista Hamas na Faixa de Gaza, dando início ao conflito que perdura até hoje no Oriente Médio. Na cerimônia onde os nomes foram proferidos recordou-se igualmente as vítimas de um dos piores massacres na Itália durante a 2ª Guerra Mundial, quando nesta localidade de Bolonha centenas de civis foram mortos pelo grupo paramilitar nazista Waffen-SS no ano de 1944.
O cardeal estava ali em nome das vítimas, dos inocentes que perderam suas vidas sem sequer entender o que estava acontecendo ao seu redor. Contra a lei de que a história é sempre feita em nome dos vencedores, Zuppi quis invertê-la, buscando um cessar da violência e um caminho para a paz.
Lendo durante sete horas a lista dos vencidos e das vítimas, o cardeal fazias memória de todas as vítimas inocentes da história da humanidade e desejava iluminá-la com a luz da paixão de Cristo acontecendo nos crucificados da terra. Com seu gesto e sua lista, procurava fazer, em uma palavra, uma anti-história.
A memória das vítimas não é uma operação ociosa de aprendizagem memorial, nem uma forma de tranquilizar a consciência instalada na amnésia coletiva da cultura do bem-estar. É um ato de solidariedade que olha para o futuro, buscando construir um mundo melhor para as novas gerações. Mas que o faz sem esquecer o que está atrás, qual seja, o sofrimento de pessoas criadas por Deus, que têm uma dignidade infinita e cuja memória não pode perder-se na noite da história. Essas pessoas não podem nunca ser esquecidas. Recordá-las, pronunciando seu nome, é o reconhecimento da injustiça cometida contra inocentes, e o ato de reparação e reabilitação de sua dignidade humana.
As vítimas têm nomes específicos. E para que esses nomes não desertem de nossa curta memória e continuem a habitar nossa vida, é preciso guardar com cuidado e desvelo os nomes que o cardeal Mateo Zuppi leu e repetiu como uma litania e uma ladainha. Sete horas lendo os nomes das crianças mortas em Gaza. Dizer-lhes o nome, recordar-lhes o nome é afirmar que estão vivos e que apesar da barbárie ainda é possível ter esperança
“Não são números, são pessoas”, declarou o Cardeal Zuppi sobre as mais de 12 mil crianças mortas. E ressaltou que a leitura das 469 páginas com todos os nomes serviria para recordar e manifestar atenção a todas as vítimas do conflito em Gaza.
A proposta foi de fazer “uma oração insistente para que se possa escolher o caminho do cessar-fogo e da paz”, enfatizou o cardeal. E para isso leu e fez ecoar no espaço público seus nomes, pronunciados liturgicamente, ritualmente, diante do Deus vivo.
A lista de Zuppi nos situa diante da única instancia pela qual Deus revela inequivocamente sua autoridade: o sofrimento inocente das vítimas com as quais o mistério divino se identifica. Que esse cântico de infindáveis nomes continue a ressoar para que o conflito tenha fim e a vida encontre uma nova oportunidade em Gaza e no resto do mundo.
Maria Clara Bingemer. Professora do departamento de teologia da PUC-Rio