ARTIGOS
Padre Romanelli: um pastor ferido em Gaza
Por MARIA CLARA BINGEMER
Publicado em 19/07/2025 às 20:18
Alterado em 19/07/2025 às 20:18
Todas as noites até as vésperas do dia 22 de abril de 2025, o telefone tocava em Gaza, na paróquia da Sagrada Familia, única comunidade católica do lugar. Dentro dela se reúnem os poucos cristãos – em torno de 500 – que ali vivem, assim como também ortodoxos que frequentam celebrações e reuniões. Do outro lado estava o Papa Francisco chamando desde Roma seu conterrâneo e amigo, o padre Gabriel Romanelli que há cinco anos está à frente da comunidade paroquial. Assim acontecia todas as noites desde os ataques do dia 7 de outubro de 2023. O papa argentino telefonava para Gaza e fazia videochamadas com a comunidade situada no meio do perigo e do risco. A última vez foi no sábado anterior a sua morte, e aconteceu mais cedo do que de costume, já que o papa sabia que a comunidade estaria em vigília celebrando o tríduo pascal.
O Pontífice conversava dizendo mesmo palavras em árabe como “salam alaikum” (a paz esteja convosco). Interessava-se carinhosamente pela comunidade, fazendo perguntas sobre como estavam, o que haviam comido. Abençoava as crianças e demonstrava sua solidariedade pastoral aos que vivem em meio à guerra. Sabia que sua presença era reconfortante sobretudo para o Padre Romanelli, que sentia a presença de sua Igreja nas circunstâncias tão difíceis que vive juntamente com sua comunidade. Por outro lado, o padre garantia ao papa que os paroquianos rezavam por ele. Francisco agradecia em árabe: "Shukran" (obrigado).
Aquele encontro diário entre o Papa, o padre e a comunidade tinha outras importantes razões que nem todos percebiam. Por um lado, ajudava a proteger a comunidade de bombardeios e ataques. A presença do papa, mesmo de longe e por video chamada, constante e incansável, não só impunha um certo respeito como sobretudo ajudava a garantir que a conexão de internet fosse mantida na região. Assim a comunicação com o exterior era garantida e ao mesmo tempo a voz de Gaza se mantinha audível e comunicante.
Padre Romanelli vive no Oriente Médio há mais de três décadas e é o pastor da pequena comunidade da Sagrada Familia, a qual, apesar do tamanho, tem uma imensa força simbólica. Desde essa “trincheira” da fé, o padre mantém uma comunicação com o mundo inteiro através das redes sociais da própria paróquia, nas quais posta fotos, vídeos e mensagens onde se podem ver momentos da vida daqueles e daquelas que ali se encontram refugiados em meio ao conflito que já dura quase dois anos.
Com a morte de Francisco, cortou-se um importante cabo da comunicação do Padre Romanelli para fora dos muros de sua paróquia, mas esta continuou a acontecer graças à tecnologia que também por lá funciona apesar da violência e da guerra. Vídeos enviados e exibidos há poucos dias mostram imagens onde se veem os fiéis assustados durante a celebração da missa devido às bombas que atingem a igreja.
Hoje, dia 17 de julho pela manhã, um forte bombardeio atingiu a paróquia da Sagrada Familia. Houve mortos e vários feridos, entre eles o próprio Padre Romanelli, que foi atingido levemente na perna, tendo sido atendido e tratado no hospital local. Experimenta neste momento as consequencias dos mesmos sofrimentos que acometem diariamente seus paroquianos.
Imaginamos que nestes dias devem voltar uma e outra vez à sua memória as palavras do Papa Francisco, dizendo que a guerra é sempre uma derrota, de uma macabra inutilidade que penaliza sobretudo os inocentes e os vulneráveis que nada têm a ver com ela, que não a desejam e não a levam a cabo.
O papa instava junto ao padre Romanelli que protegesse as crianças e os pobres. E pelo que diz o sacerdote, graças a Deus puderam ajudar não só a comunidade cristã, mas também os muçulmanos vizinhos da paróquia. A Sagrada Familia procurou ser uma pequena ilha de conforto e ajuda para a população que tanto vem sofrendo em meio ao conflito.
Em meio à guerra, esse mensageiro da paz continua inabalável em seu serviço atento e gratuito a sua comunidade e aos que dela se aproximam procurando segurança, ajuda e conforto. E hoje, apesar da perna ferida, não foi diferente. Consta nos meios de comunicação que Romanelli passou o dia ajudando os outros. No céu Francisco deve estar sorrindo e abençoando este fiel servidor do Reino de Deus. Obrigada, Padre Romanelli, por ser uma testemunha inabalável da esperança.
Maria Clara Bingemer. Professora do departamento de teologia da PUC-Rio