ARTIGOS
Bússola avariada e voos cegos
Por ADHEMAR BAHADIAN *
Publicado em 01/06/2025 às 09:29
Alterado em 01/06/2025 às 09:29
De vez em quando, me lembro da “Hora do Brasil”. Na minha infância, programa transmitido ao cair da noite em todas as rádios do país. Minhas tias o ouviam enquanto esperavam impacientes a novela que se seguia, “Direito de Nascer”. Deveria chamar-se o “Direito de envelhecer”, pois depois do rádio seguiu por muitas eras na televisão…
A “Hora do Brasil” me parecia singrar um mundo muito mais fascinante. A voz do locutor, sempre grave e dramática, alertava: "aviso aos navegantes: farol da Barra azul apagado. Risco de ventos fortes a sudeste. Boia de amarração avariada".
E aquelas frases me faziam vivenciar, num misto de medo e coragem, a vida dos navios e tripulantes nos mares do Brasil. Nos anos da guerra - me lembro de raspão - havia sempre o risco dos submarinos nazistas, sempre traiçoeiros a atacar, com seus torpedos, pacíficos navios de cabotagem.
Hoje são bem maiores os perigos e sempre mais assustadoras as notícias. Os submarinos contra os quais lutamos em busca da liberdade e da Democracia agora parecem ter mudado de bandeira e navegam e aportam em mares antes insuspeitos de os abrigarem. Há, senhores navegantes, muitos faróis apagados, muitas minas marítimas desgarradas, muita novela a defender o não direito de viver. Tempos de ventos de insânia, mas também de cobiça e de lucro desenfreado.
Com o fim da Segunda Guerra, vivemos os chamados anos dourados até os anos 70 do século 20. De lá para cá, começando com Nixon e se consolidando com Reagan e Thatcher, o mundo ocidental - esta parte da terra que nos toca - jogou aos mares o Trumpnik, transatlântico do neoliberalismo, que, hoje, morto-vivo, põe em nossos corações um grande medo.
É mais do que hora de enfrentarmos essas novas realidades dissonantes com tudo que aprendemos e valorizamos nos últimos 80 anos. Não há como sustentar a política disseminada por Donald Trump sem contrariar os princípios básicos da Democracia, do Direito Internacional e dos ideais de crescimento e desenvolvimento que inspiraram as Nações Unidas.
Com a proposta neocapitalista trumpista ressurge das noites de trevas o pior das relações internacionais ou meramente civilizacionais. A retomada da política chamada de “tarifaço“ é simplesmente o deboche reiterado de décadas de negociações comerciais tanto no GATT quanto na OMC, e faz da lei do mais forte o princípio fundamental das relações econômicas e políticas desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
As ridículas restrições à liberdade de ensino impostas às Universidades americanas nos surpreendem pelo barbarismo inédito e pela desfaçatez de estarem a ser defendidas como consoantes com os direitos de liberdade de expressão.
As críticas ao Supremo Tribunal Federal brasileiro e a seus ministros ficarão como nódoa impagável na história das relações bilaterais Brasil e Estados Unidos da América. Principalmente porque, sabemos todos, são patrocinadas por poderosíssimas empresas de comunicação pouco ou nada preocupadas com os direitos democráticos e interessadas apenas em expandir os monopólios e oligopólios no mercado internacional.
O que se deve ter em mente em situações como esta não é o resultado politico para este ou aquele partido. A comunhão de interesses se impõe.
Não se pode comprometer a soberania nacional por razões eleitorais que beneficiem a quem quer que seja.
Como certa vez disse Carlos Lacerda, com espada ou cortador de unhas, não se pode rasgar a Constituição. E Lacerda entendia de golpes.
Além do mais, como estamos vendo, Trump não prega prego sem estopa. E o preço do apoio dele não é barato.
A próxima reunião dos Brics aqui no Brasil é excelente oportunidade para que se harmonizem medidas internacionais com vistas a proteger a Democracia - bem maior que não podemos perder mais uma vez - e eliminar o autoritarismo. Não há como negar que o neoliberalismo revisitado que se propõe instalar nos Estados Unidos da América é um risco para as liberdades que mal ou bem reconquistamos por determinação cívica.
O risco não é trivial e justifica, dentre outras coisas, que o Congresso Brasileiro reaprenda a linguagem da política e se liberte da paroquialidade abusiva e de linguagem escravocrata que assistimos constrangidos, envergonhados e revoltados na visita da ministra do Meio Ambiente, Marina da Silva, ao Senado Federal.
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EM TEMPO. Enganam-se os que imaginam que o Embaixador Marcos Azambuja, que nos acaba de deixar, tenha no bom humor sua principal característica. Azambuja era diplomata de personalidade forte e defensor de nossos interesses mais delicados. Sua passagem como embaixador do Brasil na Argentina foi reconhecida pelas maiores autoridades argentinas como valiosa para o bom entendimento de nossos países. Azambuja poderia ser duro sem nunca ser grosseiro quando nossos interesses ou a autoridade dele estivessem em jogo. Assisti uma vez um desmonte implacável de um adversário seu. Não sobrou pó. Sob seu humor, é preciso esclarecer que Azambuja nunca foi um piadista. Nunca foi o tipo que sabia sempre a última piada. Não. Azambuja - a par de sua invejável inteligência verbal - era um mestre da frase com a qual desenhava caricaturas no ar. Era um pintor surrealista da Comédia Humana e nos fazia rir de nossas fragilidades, nossas pompas, nosso ridículo. Junto com Liliane, minha estimada e admirada colega desde os anos 60 na PUC, tivemos um casal raro tanto na competência quanto na simpatia na defesa dos maiores interesses do Estado brasileiro.
* Embaixador aposentado