ARTIGOS
Um sopro e um vômito
Por ADHEMAR BAHADIAN*
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Publicado em 11/05/2025 às 05:23
Alterado em 11/05/2025 às 05:23
Uma gaivota regurgitou um rato no mesmo teto, na mesma hora em que a chaminé da Capela Sistina expelia fumaça branca. A notícia foi discretamente abafada. Mas, há quem veja na coincidência mais do que um mero acaso. Um aviso. Uma metáfora.
Acaso, ou não, é bom botar as barbas de molho. E, aqui entre nós, não terá sido também mero acaso que Leão XIV, ainda Cardeal, em sua primeira alocução pública, excomunga a visão de Vance, vice, sobre a hierarquização da solidariedade cristã em que os imigrantes quase são excluídos. Logo ele, Leão XIV, Papa apostólico imigrante. Provocação insolente.
E é bom não esquecer que Francisco, antes de partir, fez questão de deixar claro ao mesmo Vance a soberania papal na indicação de cardeais nos Estados Unidos. Será que nossa indisposta gaivota sabia disto?
Minha geração nos anos 50 do século XX rezou pela conversão da Rússia, pátria então do comunismo anticristão. Hoje, surpreende o descaminho que impulsiona os Estados Unidos de Trump numa ladeira escorregadia muito longe dos princípios de solidariedade cristã e de regras do Direito Internacional.
Não creio que a escolha do Papa em se fazer continuador da obra de Leão XIII e da encíclica “Rerum Novarum”, pedra fundamental da Doutrina Social da Igreja, esteja desvinculada das óbvias arritmias dos Estados Unidos de hoje, cuja população cristã - não necessariamente católica - parece se curvar a um destino em tudo e por tudo alheio, quando não antagônico, aos objetivos da “Paz na Terra“, outro pilar essencial da Doutrina Social da Igreja.
A rápida eleição de um Papa de origem americana, muito antes de ser fruto de um polegar autoritário de Trump, é um sopro da solidariedade cristã diante de uma ameaça de cisma cristão de repercussões imprevisíveis. Vance está se especializando em rondar o impensável.
E, convenhamos, a reação do Conclave é a primeira reação efetivamente orgânica e articulada contra o desmonte da civilização, como a conhecemos desde as derrotas dos totalitarismos nos anos da primeira metade do século XX. Um sopro capaz de reduzir as brasas de um capitalismo depredador e imensamente divisivo, sôfrego de um enriquecimento sempre parasitário. Antropofágico. Neocolonial.
Não se deve minimizar a força trazida pelo renascimento da Doutrina Social da Igreja sobre as falências óbvias dos partidos extremistas e totalitários incapazes de responder a demandas de justiça social crescentes . E não será a primeira vez que a Doutrina Social da Igreja servirá de contraponto a um destino manifestamente indigesto.
O Brasil, apesar das tensões bruxuleantes em nossa sociedade, vem apresentando sucessivos bons resultados macroeconômicos. Ao contrário dos Estados Unidos da América que, em poucos meses, destruiu o sistema Internacional de regras econômicas e políticas, o Brasil assiste perplexo a tentativa de solapar as Universidades americanas, bem como o sistema de saúde pública daquele país. Em nome de quê?
A nós não interessa interromper nosso processo de desenvolvimento econômico em nome de um experimento suicida que nos chega cotidianamente como marolas de uma ressaca sem sentido. Somos pobres demais para adiarmos um prato de comida. Ou uma bolsa-família. Ou um subsídio escolar a promover uma revolução educacional.
A inserção dos princípios da Doutrina Social da Igreja em nosso horizonte de progresso será elemento mais do que bem-vindo para retomarmos a trilha do desenvolvimento solidário.
Registro a agenda Internacional deste ano de 2025 no Brasil, e em especial no Rio de Janeiro, oportunidade única de reunirmos os Brics e aqui discutirmos temas assinalados como prioritários pelo próprio Francisco em sua grande encíclica.
A COP 30 talvez possa dar novo entendimento sobre a responsabilidade de todos os países diante da crise climática, cuja dimensão não pode ser tratada com esta indiferença maligna, sobretudo de países que não se julgam responsabilizados pelos riscos que estamos a correr.
A tentativa de responsabilizar exclusivamente países como o Brasil pela conservação de florestas é mais uma forma de escapismo como tantos outros com que fomos submetidos desde os tempos coloniais. As florestas tropicais são fonte de vida para todos nós e por todos nós devem ser financiadas. É responsabilidade financeira coletiva. É hipócrita a exigência de um “selo bom” em nossas exportações agrícolas sem a contrapartida de um esforço coletivo no saneamento do planeta. Ainda que os canudinhos de papel incomodem sua Alteza.
A reforma do sistema internacional exigirá uma visão muito além da odiosa política do protecionismo, tarifário ou não, bem como uma clara condenação dos mecanismos de concentração oligopolista da transferência de tecnologia. E o que Trump está a nos oferecer é o retorno à odiosa política de “empobrecer o seu vizinho” que havíamos superado com a cláusula de nação mais favorecida, que Trump entende ser uma regra a beneficiar exclusivamente os Estados Unidos da América.
Talvez poucas vezes na história de nossa aventura planetária nos tenha sido colocado de forma tão definitiva o desafio de nos mostrarmos mais inteligentes do que um bando de narcisistas odiosos e ignorantes.E estupidamente monetário - trogloditas.
O último trem para a sanidade acaba de sair da Praça de São Pedro. A história não se repete. Se reconstrói.
*Embaixador aposentado