ARTIGOS

Anárquico capitalismo libertário

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 21/11/2023 às 10:17

A eleição de Javier Milei certamente merecerá extensas análises de comentaristas políticos nos próximos dias. A mim me chocou. A surpreendente vitória sobre seu oponente por quase 12% de diferença deixou boquiabertos os mais otimistas prognósticos de seus eleitores. A mim seu discurso de vitória me deixou também boquiaberto pela rasteiríssima aridez política. Poucas vezes vi e ouvi discurso de um vitorioso ser orquestrado com tantos dobrados funéreos.

Mas, queiramos ou não, a eleição argentina é uma clara, contundente e insofismável advertência aos políticos, principalmente os que se especializam na manipulação dos dinheiros públicos em favor de interesses corporativistas, mesmo ao risco de provocar o desprezo, quando não a ira, de crescentes segmentos populacionais de seus países. O Brasil, com o que estamos presenciando nas emendas parlamentares e partidárias, infelizmente parece acreditar que a população é cega ou pelo menos vesga. Ou apática. Ou apátrida.

A Argentina chegou a seu limite de paciência cívica depois de tantos anos de sucessivos erros, regressões sociais e sofrimento popular. Morei na Argentina por cinco anos, de 2000 a 2005, anos de imensa turbulência política e de constante desmonte da economia nacional. Ali, naquele período surreal, em que a moeda nacional perdia seu valor até mesmo circulatório, surgiam os chamados “Patacões" quase-moedas a terem aceitação numa província e não serem reconhecidas em outras.

Aprendi a respeitar a resiliência do povo argentino, principalmente de sua classe média visivelmente a perder seus salários numa inflação diabólica e num desemprego vertiginoso. Mas, o argentino não esmorecia e todos os dias havia panelaços terríveis, persistentes, diante de bancos a reter contas e liquidez, a tal ponto que, comparadas, as peripécias do período Collor no Brasil parecessem coisa de crianças no parque.

No final do ano 2001, em menos de um mês, quatro presidentes da Nação foram empossados e os mesmos quatro renunciaram diante da ingovernabilidade. E os panelaços continuavam, as marchas diante dos bancos não cessavam e o custo de vida não parava de subir. Bravos argentinos.

O governo neoliberal de Menem, tendo como ministro da Fazenda Domingo Cavalo, deu um breve respiro à população para, logo em seguida, com a dolarização, criar o descalabro econômico de fazer da Argentina um país permanentemente ameaçado em sua soberania pelos credores internacionais e seus conselhos “muy amigos” como os do FMI, à época um arauto agressivo do Consenso de Washington e seu neoliberalismo predatório.

Durante todo este período, apesar do constante empobrecimento de sua população, a Argentina manteve um sistema de assistência médica pública de excelente nível e um ensino público do primário ao universitário invejável. Milei avisou que vai privatizar os dois, porque justiça social, segundo ele, é um escárnio no manual do anárquico capitalismo libertário.

Naquele período, eu ocupava as funções de Consul-Geral do Brasil e tomei a iniciativa de visitar todas as escolas públicas de Buenos Aires com nomes que homenageavam o Brasil ou brasileiros. Surpreendi-me sempre com o interesse dos alunos pelo Brasil e sobretudo pelos persongens históricos que davam nome a suas escolas. Na escola Getulio Vargas, aberta nos anos 40 pelo próprio Getulio, que nela plantou uma árvore, a diretora da escola me levou à sua sala para mostrar-me, orgulhosa, a estante de vidro em que conservava a pá de que Getulio se havia servido. Se o Consul-Geral da Argentina fizesse aqui no Rio de Janeiro o mesmo experimento teria tão positivas provas de apreço por seu país?

Não tenho a menor dúvida que o tempo em que Milei estiver na Casa Rosada exigirá de nossa diplomacia o melhor dos esforços para não se deixar corroer uma construção de cooperação entre o Brasil e a Argentina, que se iniciou desde o período Peron-Vargas, se consolidou e aprofundou no período Alfonsin-Sarney e não se abalou nos últimos anos, apesar dos visíveis estranhamentos de que todos sabemos.
A Argentina é um parceiro estratégico do Brasil. Nossas boas relações bilaterais são complementadas por nossos entendimentos, nem sempre fáceis, no Mercosul. Nossas diplomacias são as melhores que conheço no continente americano. Repito: no continente americano.

De tudo que ouvi e vi sobre a eleição de Milei o que mais me preocupou e me soou como as badaladas de um sino rachado foi a mensagem de satisfação de Donald Trump.
É aí que mora o perigo.

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Em Tempo: Merece leitura atenta o artigo de Paulo Nogueira Batista Jr.”Samuel Pinheiro Guimarães e a negociação com os europeus.”
2. Um bom teste para a compreensão do anárquico capitalismo libertário será ver a mudança ou não da posição da Argentina em relação ao acordo Mercosul-União Européia. Não esquecer que o acordo foi assinado nos tempos da dobradinha Macri na Argentina e Paulo Guedes no Brasil. E provocou cócegas nos Estados Unidos.

 

Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado

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