ARTIGOS
Em nome do Padre, dos filhos e de todos nós
Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 12/11/2023 às 08:17
Alterado em 12/11/2023 às 08:17
Ou baixa em nós o verdadeiro mandato maior de toda religião, a tolerância ao próximo, ou a Guerra entre Israel e o Hamas cindirá o mundo entre o ódio e a barbárie.
Convenhamos: o que se vê diariamente é o aprofundamento do horror na matança generalizada de inocentes em nome de um combate aos designados sacrílegos, tanto por um lado da moeda como do outro, como se a cara ou coroa sempre impulsionasse o gesto de polegar negativo de um Nero, de um Calígula, de um autocrata paranóico.
Para o Brasil, país que, queiramos ou não, dá aulas de tolerância religiosa, graças ao sincretismo de nossas crenças, não há, que eu preveja, desastre maior que a importação de intolerância religiosa que estamos a ver de poucos anos para cá.
Está mais do que na hora de rearranjarmos nossa instituições políticas, separá-las de nossas crenças religiosas e sobretudo de nossos usos e costumes sociais. O grande impasse que vivemos hoje é este angu em que o religioso se confunde com mandamentos econômicos, e os usos e costumes se pautam por uma rigidez confusa entre a valoração romântica do passado e a abertura progressista despojada de grilhões do medo à liberdade, como diria Erich Fromm que minha geração leu na juventude.
Mas, não custa insistir: estamos vivendo uma era de “tudo junto e misturado” com efeitos palpáveis deletérios sobre a arte de viver. Nunca tivemos tantos inimigos reais e virtuais a nos tirar a paz. Isto não é normal no Brasil. Nunca foi.
Para completar, temos uma conjuntura internacional particularmente ameaçadora a começar pela incrível possibilidade de que os Estados Unidos lancem sobre o mundo a sua mais belicosa bomba de nêutrons, aquela que mata as pessoas e preserva o capital financeiro, que atende pelo prenome David.
Se aqui está misturado e junto, lá está dividido e em pé de guerra com a Democracia em estado letárgico. A alternativa Biden, apesar de suas falhas de memória aqui e ali é infinitamente mais promissora, embora muitos de seus assessores não escondam um certo tropismo pelo renascimento de uma Guerra Fria e uma redivisão do planeta em áreas de influência absolutamente irrealista.
Não se deve porém esquecer que grande parte desta algaravia decorre dos erros de dogmatismo econômico corporificado no neoliberalismo que nos trouxe um mundo de desigualdades mais acentuadas e uma visão do investimento público flagrantemente prejudicada pelo rentismo da financeirização global. Mais uma vez a mistura absolutamente explosiva entre os hoje mal-absorvidos ensinamentos de Lutero com os de Mies e párocos da religiosidade monetizada nos leva a um retrocesso evidente em que se colocam no mesmo balaio valores históricos da civilização ocidental com arranjos militares, como a OTAN, ou esquemas multilaterais pouco equânimes, como a OMC e até mesmo o Conselho de Segurança das Nações Unidas, que morreu de morte matada.
Neste cenário, o Brasil é um dos mais equipados países de mundo para assumir uma visão progressista como explicitada por Jesus Cristo quando interpelado por fariseus que o desafiavam sobre o direito ou não de os senhores do poder cobrarem tributos. “A Deus o que é de Deus e a César o que é de César”. Clara indicação de que não se deve imiscuir os assuntos de governo com os de religião e muito menos não se deve apoiar que os césares e sobretudo os neros se confundam com a voz de Deus e nos imponham uma teocracia sempre aleijada.
Nosso sincretismo religioso, mais do que qualquer outro, nos ensina a humildade da tolerância com as religiões de nossos irmãos africanos aqui trazidos a ferro, e a dos imigrantes europeus e asiáticos aqui aportados em busca de melhor vida. Somos um país da redenção solidária, irmanada na tarefa inacabada de fazer desta terra o lar de homens e mulheres que, a par de suas possíveis crenças numa vida além da morte, acreditam que o inferno decididamente não deve ser aqui.
Nada talvez mais eloquente deste destino de que o abraço humanitário de Cristo sobre o Corcovado.
Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado