ARTIGOS

Direito e desordem internacional

Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 05/11/2023 às 07:47

Alterado em 05/11/2023 às 07:47

No dia em que se estudar o papel do Brasil na Presidência Pro-Tempore do Conselho de Segurança neste outubro de 2023, não sei se ocorrerá a alguém comparar nossa atuação no Conselho de Segurança com a histórica passagem de Rui Barbosa pela Conferência de Haia, que lhe propiciou o título honroso de “águia de Haia”.

Se há dois juristas ou internacionalistas gigantes do Direito Internacional brasileiro não deixaria de mencionar Rui Barbosa e, bem mais recentemente, San Tiago Dantas. Houve uma época de minha juventude - ainda sequer sonhava ser um dia diplomata - em que li várias obras de Rui Barbosa, cujo estilo, embora barroco para os dias atuais, não escondia rigor científico e lógica inatacável na abordagem dos temas sobre os quais escrevia. Eram sem dúvida, Rui e San Tiago, expressões maiores da Ciência do Direito, em evidente contraposição ao lirismo retórico muitas vezes altissonante nas aulas das Faculdades. Não estou a escrever memórias, mas San Tiago foi a decisiva influência que me levou à Diplomacia. Ponto.

Aqui sou obrigado, por dever de justiça, a fazer um parêntese e recordar meu professor de Direito Civil, tanto na PUC quanto no Instituto Rio-Branco, Ebert Chamoun, ele igualmente discípulo de San Tiago Dantas, que foi injustamente afastado dos cursos na PUC-Rio por ter defendido o divórcio do ponto de vista do Direito Civil. Professor absolutamente fascinante. Só comparável, a meu juízo, a Eustachio Portella Nunes, cujas aulas de Psiquiatria na Faculdade Nacional de Medicina, transformavam o auditório numa espécie de Bombonera em jogo do Boca. (Na hora que escrevo não sei como acaba o Fluminense versus Boca Junior).

Hoje, as aulas de San Tiago, transcritas de anotações de seus alunos estão editadas e quase esgotadas. As de introdução ao Direito na Faculdade Nacional deveriam ser lidas e estudadas por alunos de Direito, mas não só por eles, pelo notável enriquecimento intelectual que promovem. Fica a dica.

Longo preâmbulo, aquecimento muscular para entrar agora no pantanoso mundo do Direito Internacional exibido no Conselho de Segurança das Nações Unidas, sob a presidência do Brasil.

Chamou a atenção universal que a resolução elaborada pelo Brasil tenha merecido 12 votos dentre os 15 possíveis, um resultado absolutamente conducente ao revigoramento do Direito Internacional num tema e num momento particularmente sensíveis para a paz mundial. E, no entanto, a resolução foi vetada pelos Estados Unidos da América. Por quê?

Não tenho a pretensão de conhecer os escaninhos do processo decisório dos Estados Unidos, mas ao que informam fontes fidedignas públicas e oficiosas a decisão teria partido da própria Casa Branca contra o parecer do Departamento de Estado. Faz sentido.

Aprovada, a Resolução patrocinada pela Presidência do Conselho revigorava sem dúvida o Direito Humanitário e a proporcionalidade de uso da força nas guerras tal como exigidas pelo Direito Internacional, ambos vistos pelo governo israelense como atentatórios a seu direito de defesa, tal como interpretado por sua assessoria jurídica.

A aceitação da Resolução daria forte impacto ao poder decisório do Conselho, incapaz de promover efetivos passos no conflito árabe-israelense por longo tempo e teria o efeito óbvio de fortalecer as propostas de expansão do Conselho de Segurança, graças ao espírito de racionalidade trazido pelo Brasil.

Finalmente, a Resolução por ser um trabalho de ação coletiva do Conselho, inclusive pela decisão construtiva de dez Estados, em fase de participação temporária nele, esvaziaria em muito a “diplomacia do Poder” exercida pelos Estados Unidos da América, particularmente desde os tempos da "shuttle Diplomacy” de Henry Kissinger. Talvez, a razão a motivar Biden a viajar a Israel para uma tentativa salvacionista de náufragos, que, àquela altura, já haviam vislumbrado, com a Resolução vetada, botes salva-vidas à beira-mar.

Difícil aplaudir a decisão de Biden por mais que os defensores da ordem democrática vejamos nele o antídoto necessário para bloquear o retorno de Trump ao Poder com as consequências mais do que temíveis para a paz mundial. A guerra não cedeu. O governo israelense parece abusar da paciência de seu principal apoiador internacional.

O sempre sóbrio e imutável Secretário de Estado dos Estados Unidos deixa transparecer uma frustracão óbvia com suas peregrinações mal-sucedidas, muito longe do efeito Kissinger de alguns anos atrás. Consola, mas não resolve, agora adotar expressões como “pausas humanitárias” originalmente incluídas na Resolução apresentada pelo Brasil.

Corre-se ainda o risco, certamente não impossível, de ser a China, como presidente do Conselho de Segurança, quem a ressuscite e a reapresente com pequenas alterações. Ruim. Se estivéssemos no reino da Rita Lobo, diríamos que o bolo “solou”.

Termino com duas observações. A primeira sobre Rui Barbosa. Sabemos que nosso representante foi duramente criticado pelos poderosos da época ao defender a igualdade soberana dos Estados em questões jurídicas, bofetada de pelica na “Power Politics”, o que lhe valeu ser excluído posteriormente das negociações da Liga das Nações, onde se esboçou o Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Rui Barbosa é um legítimo defensor do Direito Internacional na mais profunda tradição diplomática do Brasil, cujo território foi conformado sem guerras e legitimado por cortes internacionais. Legado principal de Rio-Branco.

Minha segunda e última observação é sobre os que pensam ser o Direito Internacional algo abstrato e que se deve deixar ao debate estéril de nefelibatas.

Exemplo. A Organização Mundial do Comércio considera Direito Internacional legítimo os Acordos comerciais, como o Acordo Trips que regulamenta (?) o monopólio absurdo das patentes farmacêuticas, mostrengo que nos fez sofrer muito durante a Pandemia. O Direito Internacional neste aspecto pouco se distingue de um imposto sobre o consumo abusivo. Falei muito sobre isto e continuarei falando.

Conclusão: ainda bem que o Instituto Rio-Branco, escola de formação de nossos diplomatas, continua alimentando o Estado brasileiro com pelo menos vinte jovens anualmente, adequadamente fluentes em Direito Internacional e Economia internacional, além de justamente respeitados por seus colegas internacionais com poder de veto ou não. É’ uma alegria saber que igual excelência de formação também se identifica em outros órgãos da administração direta ou indireta.

O serviço público é uma honra a distinguir o cidadão.

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EM TEMPO: “Mas agora é a toda a República que tu diriges abertamente o teu ataque; são os templos dos deuses imortais, são as casas da cidade, é a vida de todos os cidadãos , é a Itália inteira é tudo isto que tu arrastas para a ruína e a devastação”. (Cícero. Catilinárias)

Estou lendo e recomendo “Crônicas Antieconomicas“, de Luiz Gonzaga Belluzo e Nathan Caixeta. Editora ContraCorrente.

Quais critérios de boa amizade e respeito por uma sociedade multiétnica, justificariam a indefinição sobre a partida de brasileiros na faixa de Gaza?

* Embaixador aposentado

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