ARTIGOS

Mauro Cid e o paradoxo das Forças Armadas

Por LIER PIRES FERREIRA e RENATA MEDEIROS DE ARAÚJO

Publicado em 15/07/2023 às 08:21

Alterado em 15/07/2023 às 08:21

Desde o dia 08 de janeiro, a cúpula militar vem sustentando a narrativa de que a participação de militares em atos ou tramas golpistas está dissociada do comando das Forças Armadas. Mas esta narrativa parece não corresponder à verdade.

Ainda está fresca na memória a leniência das Forças Armadas em relação ao general Pazuello, que, ainda na ativa, alçou o cargo de ministro da Saúde e, por ações e omissões, liderou uma política fúnebre, negacionista, que concorreu para a morte de milhares de brasileiros no contexto da Covid-19. Também é de recente memória a frouxidão dos comandantes militares em relação aos “acampamentos patrióticos” concentrados especialmente em frente ao Exército. Sob o argumento de proteção às famílias que lá estavam, as Forças Armadas fecharam os olhos para diferentes crimes, dentre os quais o tráfico de armas e explosivos, além do financiamento ilegal às ações golpistas e o incitamento à violência política.

A mais recente omissão das Forças Armadas para com a participação de militares em ações ou tramas subversivas ocorreu nesta semana, por ocasião do depoimento-silencioso do tenente-coronel Mauro Cid à CPMI que se debruça sobre os atos antidemocráticos de 08 de janeiro. Investigado pela Polícia Federal por delitos previstos nos códigos penais civil e militar, Mauro Cid, o Cidão, exerceu seu direito constitucional ao silêncio e compareceu fardado à CPMI, explicitando, sob o amparo do Exército, sua condição de militar. Daí a pergunta: quais as motivações de Mauro Cid?

A primeira hipótese é a de coação. Ao se apresentar silente e fardado à CPMI, Cid trouxe à baila a velha tradição golpista presente nas Forças Armadas, que ainda hoje se outorgam o papel de tutores da República. Escondido atrás de seu fardamento impecável, Cid quis lembrar aos congressistas que confrontar militares pode motivar golpes e quarteladas, desestabilizando o poder civil.

A segunda hipótese é de autoproteção. Como filho e neto de militares, Mauro Cid conta com seus pares para escapar da Justiça. Afinal, antes dele muitos outros militares, inclusive torturadores, tiveram a proteção dos seus pares para se livrar de crimes contra a democracia, a dignidade humana e a vida. Desse modo, a velha pressão militar sobre o Judiciário - à moda do que foi feito em 2018, quando o Exército ameaçou o STF para impedir que Lula obtivesse o habeas corpus que lhe permitiria disputar as eleições - garantiria mais uma vez a impunidade de um mau militar.

A afronta silenciosa de Cid aos membros da CPMI revela o paradoxo das Forças Armadas no Brasil. Elas gostariam de ser aclamadas como forças de Estado, republicanas, que pairam acima dos interesses políticos e estão sempre prontas a salvar o país de suas mazelas. Mas não é assim. Sua insistência em participar da vida política, quase sempre pela via do golpismo, e sua necessidade quase infantil de ser admirada e reconhecida faz com que frequentemente sejam lenientes com a subversão e protejam militares que atentam contra a ordem constitucional.

Embora isso não surpreenda, vale notar que as ações criminosas pelas quais Cid é investigado não parecem ter causado qualquer incômodo às Forças Armadas. Ao contrário! Autorizado a depor fardado na CPMI, posto que em regular exercício de função militar quando dos crimes pelos quais é investigado, Cid parece contar com o apoio da maioria de seus pares, que o enxergam como mártir ou herói. Por isso, por mais greve que sejam os crimes que possa ter cometido, o tenente-coronel recebe das Forças Armadas reiterados votos de confiança e solidariedade, expressos pelo estrondoso silêncio pelo qual especialmente o Exército se manifesta.

Isso é quase inacreditável! Embora venha sujando o nome das Forças Armadas, Cid não recebe dos seus pares qualquer sanção ou censura. Não há uma palavra de indignação, um inquérito militar, seja penal ou administrativo, uma ação investigativa do sistema de Justiça Militar. Nada! No fundo, parece que o alto comando, como de resto a imensa maioria dos militares, acredita que golpes de Estado, extremismo político, mandonismo e negação da ordem constituída são funções das forças castrenses. Eles se colocam acima da lei. A ambição e a sede de poder parecem corroer parte expressiva dos militares, solapando a honra e fomentando o pior tipo possível de participação política: o golpismo insidioso, a sedição perversa, o fomento salvacionista do caos.

Não há dúvida de que há militares incomodados com a leniência e a proteção das Forças Armadas a maus militares como Mauro Cid. Eles também repudiam o uso político dos militares, turbinado no governo Bolsonaro sob a insidiosa conivência de muitos comandantes. Bem sabem que tais eventos dilapidam o bom nome das Forças Armadas, incitam a anarquia e contribuem para o aliciamento de praças e oficiais contra o império da lei. Por isso, é hora do alto comando resgatar os princípios de legalidade, hierarquia e disciplina que devem balizar a vida militar, cortando na própria carne em favor da estabilidade democrática e da ordem política. Basta de impunidade!


Lier Pires Ferreira. PhD em Direito. Pesquisador do LEPDESP/UERJ

Renata Medeiros de Araújo. Mestre em Ciência Política. Advogada

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